O ministro Sebastião Reis Júnior, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), manteve a condenação da ex-juízade Mato Grosso, Sonja Faria Borges de Sá, por peculato/desvio. O recurso especial, interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT), foi parcialmente conhecido, mas o pedido de reforma da sentença foi negado.
Sonja foi condenada por desviar recursos públicos ao nomear servidores para cargos de confiança no gabinete da 1ª Vara da Comarca de Jaciara, que, segundo as investigações, desempenhavam exclusivamente serviços particulares em sua residência, localizada em Curitiba (PR). Os servidores realizavam atividades como cuidados domésticos, pagamento de contas pessoais e segurança. Consta dos autos que, o esquema funcionou entre 2005 e 2007, gerando prejuízo de R$ 144.034,33 aos cofres públicos.
No recurso, a defesa da ex-magistrada argumentou ausência de dolo, alegando que a conduta seria atípica e que o Ministério Público teve mais prazo para apresentar alegações finais, o que teria ferido o princípio da paridade de armas. Além disso, questionou a dosimetria da pena, apontando que os fundamentos utilizados para fixar o regime inicial semiaberto seriam equivocados.
Contudo, o ministro Sebastião Reis Júnior rejeitou os argumentos da defesa. Ele ressaltou que ficou comprovado no processo que os servidores nomeados não desempenhavam funções públicas, mas sim atividades privadas para a recorrente. A decisão também considerou que não houve prejuízo à defesa durante o julgamento e que a fixação da pena foi fundamentada de maneira idônea, considerando a vultosa quantia desviada e a dificuldade de fiscalização causada pelo esquema.
O STJ manteve o regime semiaberto para o cumprimento da pena, rejeitando a alegação de reformatio in pejus, pois o regime já havia sido fixado na sentença inicial. A revisão da dosimetria foi descartada, pois não houve qualquer ilegalidade evidente ou abuso de poder.
Confira a íntegra da decisão:
REsp 2045726/MT (2022/0404762-2)RELATOR:MINISTRO SEBASTIÃO REIS JÚNIORRECORRENTE:SONJA FARIA BORGES DE SÁADVOGADOS:FRANCISCO DE ASSIS DO REGO MONTEIRO ROCHA JUNIOR - PR029071GUSTAVO ALBERINE PEREIRA - PR054908RICARDO KAWASAKI - MT015729JOÃO RAFAEL DE OLIVEIRA - PR056722ROBERTA MARIARA PENTEADO - PR094947RECORRIDO:MINISTERIO PÚBLICO DO ESTADO DE MATO GROSSO
DECISÃO
Trata-se de recurso especial interposto por Sonja Faria Borges de Sá, com fundamento na alínea a do permissivo constitucional, contra a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso na Apelação Criminal n. 001492-97.2012.8.11.0010 (fls. 950/976) que condenou a recorrente como incursa nas sanções do art. 312, caput, 2ª parte, do Código Penal.
Opostos embargos de declaração, foram rejeitados por ausência de vício (fls. 1.084/1.096).
Nas razões do recurso especial (fls. 1.114/1.150), a recorrente sustenta a ocorrência de violação dos arts. 404, 619 e 617, todos do CPP, bem como ofensa aos arts. 312, 59 e 33, todos do CP.
Apresentadas contrarrazões (fls. 1.153/1.162), o Tribunal local admitiu o recurso especial (fls. 1.163/1.167).
Instado a se manifestar, o Ministério Público Federal opinou pelo parcial conhecimento e desprovimento do recurso especial (fls. 1.176/1.199).
É o relatório.
O acórdão do Tribunal de origem manteve a condenação da ora recorrente como incursa no crime previsto no art. 312, caput, 2ª parte, do Código Penal.
Foram veiculadas no apelo nobre as seguintes teses: a) preliminar de ausência de paridade de armas ante o maior prazo conferido ao Ministério Público para apresentar alegações finais (ofensa ao art. 404 do CPP); b) não enfrentamento pelo Tribunal de origem de questões fundamentais para o correto desfecho da lide (ofensa ao art. 619 do CPP); c) atipicidade da conduta (ofensa ao art. 312 do CP); d) equivocada valoração, na dosimetria da pena, das circunstâncias e consequências do crime (violação do art. 59 do CP); e) reforma em prejuízo da recorrente quanto ao regime inicial da pena (ofensa ao art. 617 do CPP e art. 33 do CP).
Passo, pois, ao exame de cada um dos argumentos veiculados na peça recursal.
Com relação à alegada violação do art. 404 do CPP, a recorrente asseverou, apenas, que o prejuízo sofrido pela defesa é justamente o desnivelamento da paridade de armas, de modo que a sua defesa é mitigada ao lhe ser conferido menos tempo para elaboração de suas alegações finais (fl. 1.122).
As alegações finais foram apresentadas e as teses defensivas apreciadas na sentença. Observa-se, pois, que não demonstrou concretamente qual o prejuízo causado pelo indeferimento do elastecimento do prazo.
Registro que, no âmbito do Direito Processual Penal, vigora o princípio pas de nullité sans grief, segundo o qual, para ser reconhecida nulidade, é necessária a comprovação de efetivo prejuízo para a parte que a alega, o que não se verifica no caso sob análise. Confira-se: AgRg no HC n. 815.125/SC, Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT), Sexta Turma, DJe 16/11/2023; e RHC n. 95.446/SC, Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, DJe 25/5/2018.
Assim, no ponto, não há violação da legislação federal.
Ademais, tenho que não prospera a alegação de ofensa ao art. 619 do Código de Processo Penal, porquanto, pela leitura dos fundamentos colacionados no acórdão que julgou os embargos de declaração, foi demonstrada a ausência de vícios.
Com efeito, não há falar em negativa de prestação jurisdicional pela instância ordinária. Restou consignado pelo Tribunal a quo (fls. 1.088/1.094):
Sem razão, no entanto, a embargante, porque se verifica do acórdão embargado que toda a matéria questionada nesta oportunidade foi debatida e analisada de forma clara e minudente por este órgão revisor, afastando o seu pleito absolutório baseado na tese de atipicidade da conduta por ausência de dolo, bem como expondo os fundamentos justificadores da imposição da pena acima do mínimo do legal, que, aliás, foi mitigada nesta instância revisora […].
[...]
Nota-se, pois, que as teses sustentadas pela defesa da embargante foram debatidas à saciedade e ficou muito claro no acórdão embargado que ela, na condição de magistrada, desviou valores do erário estadual, mediante a indicação e a admissão de pessoas em cargos comissionados em seu gabinete – no período julho de 2005 a dezembro de 2007 –, as quais, na realidade, prestavam serviços particulares diversos, de ordem doméstica, para a embargante, fato que caracteriza, indiscutivelmente, o crime de peculato-desvio previsto no art. 312, caput, do Código Penal.
A teor da jurisprudência desta Corte, os embargos declaratórios não se prestam para forçar o ingresso na instância extraordinária se não houver omissão a ser suprida no acórdão, nem fica o juiz obrigado a responder a todas as alegações das partes quando já encontrou motivo suficiente para fundar a decisão (AgRg no Ag n. 372.041/SC, Ministro Hamilton Carvalhido, Sexta Turma, DJ 4/2/2002), de forma que não há falar em negativa de prestação jurisdicional apenas porque o Tribunal local não acatou a pretensão deduzida pela parte (AgRg no REsp n. 1.220.895/SP, Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, DJe 10/9/2013).
Na realidade, ao apontar negativa de vigência do art. 619 do Código de Processo Penal, buscou a recorrente o rejulgamento da causa, providência incompatível com a via estreita do recurso integrativo. Veja-se: AgRg no REsp n. 1.356.603/RS, Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, DJe 9/6/2014.
Cumpre destacar a orientação do Supremo Tribunal Federal, firmada em julgado com repercussão geral, no sentido de que as decisões judiciais não precisam ser necessariamente analíticas, bastando que contenham fundamentos suficientes para justificar suas conclusões (QO no AI n. 791.292, julgado sob a relatoria do Ministro Gilmar Mendes), circunstância verificada no caso.
Não há violação do art. 619 do CPP, pois o Tribunal de origem enfrentou, de forma fundamentada, as irresignações recursais, adotando, contudo, solução jurídica contrária aos interesses da recorrente, não havendo falar, assim, em negativa de prestação jurisdicional (AgRg no REsp n. 2.042.625/RS, Ministro Jesuíno Rissato, Sexta Turma, DJe 14/3/2024).
Portanto, ausente violação do art. 619 do CPP.
Sustenta, ainda, a recorrente a ofensa ao art. 312, do CP, haja vista que não houve a configuração do peculato e pela inexistência de ardil na sua conduta.
Acerca da materialidade da conduta, o Tribunal de origem concluiu que a forma de nomeação dificultou a fiscalização, bem como que não houve desvio de função, mas atuação exclusiva dos contratados para interesses particulares da recorrente, senão vejamos (fls. 958/967 – grifo nosso):
[…] a apelante, valendo-se do cargo público de magistrada, contratava servidores pagos pelo Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso, lotando-os em seu gabinete na 1ª Vara da Comarca de Jaciara, para desempenhar serviços particulares, sem qualquer correlação com os cargos públicos que ocupavam; cumprindo salientar, ainda, que os referidos servidores sequer conheciam a comarca onde estavam nomeados ou até mesmo este Estado.
Corroborando essas assertivas, tem-se a declaração da testemunha Valdomiro Helinan Wanto, que, na fase judicial, relatou que foi contratado pela apelante para desempenhar as suas atividades na residência dela, substituindo outra servidora cuja função era controlar a agenda, cuidar de uma criança e pagar as contas da apelante; e, posteriormente, também desempenhou a função de motorista.
[...]
A testemunha Aline Becker, nas oportunidades em que foi ouvida, relatou que foi contratada pela apelante, que à época era magistrada, para prestar serviços de secretária particular, fazendo tarefas de ordem doméstica, na residência dela, localizada na cidade de Curitiba-PR.
[…]
E, a testemunha Adalberto de Souza dos Santos também declarou que foi nomeado para exercer o cargo de agente de segurança, lotado no gabinete da 1ª Vara da Comarca de Jaciara, da qual a apelante era a juíza titular; no entanto desempenhava o seu trabalho na residência dela na cidade de Curitiba- PR, destacando que a magistrada estava afastada por problemas de saúde e que foi contratado inicialmente para ser seu segurança, mas, posteriormente, exerceu as atividades de babá, motorista, jardineiro, conselheiro, entre outras funções.
[…]
Todavia, embora a apelante negue a prática delitiva, é forçoso reconhecer a existência de elementos probatórios suficientes para comprovar a conduta criminosa narrada na exordial acusatória, uma vez que, na condição de magistrada, desviou valores do erário estadual, mediante a indicação e a admissão de pessoas em cargos comissionados em seu gabinete – no período julho de 2005 a dezembro de 2007 –, as quais, na realidade, prestavam serviços particulares diversos para ela.
Nesse contexto, embora a apelante alegue a atipicidade de sua conduta, ante a inexistência de ardil ou porque o tipo penal não estabelece a prestação de serviços como objeto material do crime de peculato, impõe-se registrar que, na espécie, o objeto material pretendido com a conduta perpetrada são os valores, os quais foram utilizados para pagamento de empregados particulares.
Além disso, é clarividente que a nomeação dos referidos servidores para o cargo em comissão foi apenas um subterfúgio para acessar a remuneração que seria paga por este Tribunal de Justiça, a despeito de tais pessoas terem sido contratadas para prestar serviços particulares, de ordem doméstica, à apelante como se depreende dos depoimentos colhidos na instrução probatória, daí por que não há como conceber interpretação diversa, que não pela tipicidade da ação praticada, tal como corretamente o fez o juízo de primeiro grau.
[…]
[..] mesmo que as atribuições dos cargos de secretária e agente de segurança pudessem ser desempenhadas em local diverso do gabinete da magistrada, é certo que a realização de atividades de cunho doméstico, que não eram inerentes ao cargo público para os quais foram nomeados, visando apenas o atendimento das necessidades particulares da apelante (cuidar de seu filho, do cachorro, ir ao banco, pagar contas pessoais, fazer compras de mercado...), configura, inegavelmente, a hipótese de peculato-desvio, previsto no art. 312, caput, segunda parte, do Código Penal.
Dessa forma, fica evidente a irregularidade nas contratações de Aline Becker, Valdomiro Helinan Wanto e Adalberto Souza dos Santos, para os cargos comissionados de secretária e agentes de segurança, respectivamente, tendo em vista que a apelante os nomeou para cargos em comissão de natureza absolutamente distinta das funções efetivamente realizadas por eles, embora o dinheiro desviado fosse destinado ao pagamento por trabalho que deveria ter sido prestado ao Poder Judiciário Mato- Grossense, tornando-se incabível, destarte, a absolvição da recorrente.
Não há falar de remuneração que já pertencia ao funcionário. Note-se que a conclusão da Corte estadual foi no sentido de que não se tratava de servidores públicos que foram desviados de sua função, mas de indivíduos admitidos em cargo de confiança com o exclusivo propósito de prestar serviços particulares para a então magistrada. Tal fato é reforçado ao se considerar que a ora recorrente se encontrava afastada de suas funções por licença médica.
Desse modo, não havendo violação do art. 312 do CP, a desconstituição da conclusão do Tribunal a quo demandaria revolvimento de matéria fático-probatória, o que é vedado nesta instância extraordinária (Súmula 7/STJ). Nesse sentido: AgRg no AREsp n. 2.320.647/GO, Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, DJe 19/9/2023; e AgRg no REsp n. 1.876.728/DF, Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, DJe 7/6/2021.
Nesse ponto, não conheço do recurso especial.
Há, em adição, insurgência quanto à dosimetria da pena. É sustentada ofensa ao art. 59 do CP, uma vez que teria sido atribuído delineamento jurídico equivocado quanto às circunstâncias do crime, bem como fora indicada utilização de argumento genérico para justificar a maior reprovabilidade das consequências do delito.
Com relação ao tema, o acórdão recorrido registrou que (fl. 968):
No que se refere às circunstâncias do crime não resta dúvida, que agiu com acerto o sentenciante ao considerá-la desfavorável à apelante, tendo em vista que a forma como eram feitos os desvios do dinheiro público, mediante a nomeação de servidores para cargos de confiança lotados no gabinete dela, situação que passava aparência de legalidade na sua conduta, dificultou a fiscalização pelo Tribunal de Justiça sobre a lisura dessas contratações, tanto que a recorrente conseguiu utilizar-se dessa dinâmica delitiva para contratar três pessoas, em um interregno de dois anos.
No que tange às consequências do crime, mantém-se válida a fundamentação utilizada pelo juízo de primeiro grau para valorá-las desfavoravelmente à apelante, uma vez que apontou elementos concretos circundantes da conduta criminosa que notoriamente extrapolam aqueles normais à espécie, tendo em vista que, além de ferir a moralidade administrativa, violando o dever de fidelidade do funcionário público com a Administração Pública, o elevado prejuízo financeiro suportado pelo Estado – R$ 144.034,33 – atualizado à época da propositura da ação penal –, causou vultoso prejuízo aos cofres públicos, tornando a conduta dela extremamente reprovável.
Da leitura do trecho acima transcrito verifica-se a idoneidade da negativação com consequente incremento da pena.
Quanto às circunstâncias do crime, o acórdão impugnado apresentou fundamentação apta à fixação da pena-base acima do mínimo legal, pois considerou, concretamente, os elementos acidentais que extrapolam o tipo básico previsto no art. 312 do Código Penal, em especial a dinâmica que dificultou a fiscalização pelo Tribunal de Justiça. De igual forma, com relação à consequência, atribuiu-se a maior reprimenda à vultosa quantia, sendo ambos fundamentos permitidos por esta Corte. A propósito: AgRg nos EDcl nos EDcl no REsp n. 1.113.688/RS, Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, DJe 28/3/2014.
Além disso, a revisão da dosimetria da pena somente é possível em situações excepcionais de manifesta ilegalidade ou abuso de poder, cujo reconhecimento ocorra de plano, sem maiores incursões em aspectos circunstanciais ou fáticos e probatórios (AgRg no REsp n. 2.042.325/MS, da minha relatoria, Sexta Turma, julgado em 14/8/2023, DJe 18/8/2023).
Por tais razões, não observo violação do art. 59 do CP.
O recurso especial ainda indica ofensa ao art. 617 do CPP e ao art. 33 do CP. Aduz a parte recorrente que o acórdão incorreu em reformatio in pejus ao manter o regime inicial semiaberto, mesmo tendo reduzido a pena para patamar menor que 4 anos.
Contudo, a jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que ainda que no julgamento de recurso exclusivo da defesa, pode valer-se de fundamentos diversos dos constantes da sentença para se manifestar acerca da operação dosimétrica e do regime inicial fixado para o cumprimento da pena, para examinar as circunstâncias judiciais e rever a individualização da pena, desde que não haja agravamento da situação final do réu e que sejam observados os limites da pena estabelecida pelo Juízo sentenciante bem como as circunstâncias fáticas delineadas na sentença e na incoativa (AgRg no HC n. 568.016/SC, Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, DJe 1º/7/2020). Em igual sentido: AgRg no HC n. 653.368/MG, Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, DJe 26/4/2021.
Verifico que o regime semiaberto que fora fixado na sentença foi mantido no acórdão, não havendo piora na situação da então apelante. Não há, portanto, reforma em prejuízo da defesa.
Ante o exposto, conheço parcialmente do recurso especial e, nessa extensão, nego-lhe provimento.
Publique-se.
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