Antes de ser assassinado com sete tiros na região do tórax, no dia 5 de julho de 2024, em Cuiabá, o advogado Renato Nery foi chamado para "trocar tiros" pelo desembargador Sebastião de Moraes Filho, do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT), de acordo com uma denúncia sigilosa feita pelo próprio Nery que foi arquivada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Nery enviou denúncias semelhantes à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MT). Nestas denúncias, ele relatava estar sendo pressionado por um grupo de advogados que teria ligações com magistrados e que atuava em uma espécie de "escritório do crime" em Mato Grosso.
Entre os advogados citados por Nery está Antônio João de Carvalho Júnior, alvo da operação Office Crime, deflagrada pela Polícia Civil no dia 28 de novembro de 2024 para investigar a morte do advogado. Antônio João é apontado por Nery como sendo o responsável por um processo de coação para que ele fizesse um acordo desfavorável em relação a uma disputa de terras no município de Novo São Joaquim. Na época, o acordo foi homologado pelo desembargador Sebastião Filho.
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Segundo Nery, a confusão envolvendo Sebastião começou depois que a viúva de Manoel Fernandes da Cruz - fazendeiro de quem o advogado detinha cessão de direitos sobre a fazenda em Novo São Joaquim - entrou com ação para anular o acordo feito por Manoel com o advogado para repassar as terras para este último em caso de sucesso na briga judicial pela fazenda.
Após duas decisões antagônicas na 9ª Vara Cível de Cuiabá, em que uma juíza indeferiu o pedido e 10 dias depois deferiu o mesmo pedido, o processo foi parar nas mãos do desembargador. Sem detalhar em quais ocasiões a ameaça ocorreu, Nery relatou o seguinte:
"Não há recurso que lhe bote freio, a qualquer custo - até chamando o primeiro reclamante para trocar tiros - ele se arvora em relator de qualquer medida judicial de interesse da viúva", diz trecho da reclamação.
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Na reclamação, Nery relata ainda que foi o desembargador quem o coagiu, alegando que o magistrado se aproveitou de que ele havia sido acometido de covid-19 para forçar, através do advogado Antônio João, um acordo com a viúva, sob o argumento de que, se não concordassem, perderiam todas as terras.
"E como o diabo sempre intervém onde há discórdia o primeiro Reclamante foi atacado pelo mal do século (Covid-19), estado mórbido (e manifesta coação), que levou os Reclamanres (sic) a firmarem em favor da viúva o acordo maledicente, onzenário, que foi homologado pelo Des. Sebastião de Moraes com vantagem milionária para a parte adversada qual ele tinha interesse", declarou o advogado.
As alegações do próprio Nery de que o desembargador teria feito ameaças ao advogado foram relatadas à Delegacia de Homicídio e Proteção à Pessoa (DHPP) por testemunhas próximas ao advogado. Estas testemunhas relataram, no entanto, que nunca presenciaram nenhuma ameaça.
Segundo apuração da reportagem do , a investigação sobre a morte de Nery, que está sob sigilo, não tem o desembargador no rol de suspeitos. Em novembro, foram alvos de mandados de busca e apreensão os advogados Antônio João de Carvalho Junior, Agnaldo Bezerra Bonfim e Gaylussac Dantas de Araujo.
Além destes, foram alvos o casal de empresários Julinere Goulart Bentos e César Jorge Sechi. Ninguém foi preso até o momento.
Nery sempre recorreu ao CNJ
Nenhum órgão foi mais procurado por Renato Nery durante a disputa pela propriedade em Novo São Joaquim do que o Conselho Nacional de Justiça.
O advogado ingeressou com a Reclamação Disciplinar 0002234-81.2020.2.00.0000, em 2020; com a Reclamação Disciplinar 0004232-79.2023.2.00.0000, em 2023; além de duas reclamações disciplinares contra o desembargador Sebastião, que foram arquivadas.
Nas decisões de arquivamento, o órgão jurídico entendia que não havia provas suficientes para dar prosseguimento aos feitos.
Renato Nery morreu aos 72 anos, no dia 5 de julho de 2024, quando chegava ao seu escritório na Avenida Fernando Corrêa em Cuiabá. Ele foi atingido por sete tiros, um deles na cabeça.
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Outro lado
A reportagem do procurou a assessoria de imprensa do desembargador Sebastião de Moraes Filho que informou que as denúncias de Nery foram arquivadas.
Segundo a assessoria, a primeira reclamação, datada do dia 8 de janeiro de 2019, foi arquivada pela corregedora à época, Maria Thereza de Assis Moura, no dia 11 de fevereiro de 2022.
A segunda reclamação, de 22 de junho de 2023, foi arquivada pelo corregedor à epoca, Luis Felipe Salomão. Ao todo, foram quatro derrotadas de Nery no CNJ, duas para cada reclamação.
Leia a nota completa da assessoria do desembargador:
Acerca das representações formuladas pelo advogado Renato Gomes Nery junto ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ambas arquivadas sumariamente por dois corregedores diferentes e com decisões confirmadas após recurso, a defesa do desembargador Sebastião de Moraes Filho vem a público esclarecer que:
- As representações são desprovidas de qualquer indício que aponte para algum tipo de irregularidade cometida pelo desembargador, fato comprovado pelo CNJ;
- Ao analisar a reclamação, a corregedora nacional à época, ministra Maria Thereza de Assis Moura, foi taxativa ao afirmar que “não há indícios que sinalizem a prática de condutas indevidas”, determinando o arquivamento da reclamação. Esta decisão foi confirmada, por unanimidade, pelo plenário do CNJ;
- Vale destacar que a ação que motivou a reclamação feita pelo advogado junto ao CNJ foi recentemente finalizada com um acordo entre o espólio dele e a parte contrária, acordo este homologado pela Justiça.
- O desembargador destaca que jamais teve qualquer contato com o advogado que não fosse, como rotineiramente ocorre por parte de todos os magistrados, para receber memoriais e ouvir alegações em processos em que atua;
- Por fim, a defesa do magistrado lamenta e repudia que este episódio, já esclarecido, analisado e julgado pelo CNJ em duas oportunidades, seja novamente publicizado, uma vez que tais reclamações já foram noticiadas amplamente pela imprensa, com intenções que não sejam apenas a de atacar a honra do desembargador.