O desejo de retornar às terras ancestrais esbarra na ausência de uma demarcação oficial e no receio da pressão exercida por fazendeiros da região. Esse é o relato dos quilombolas da comunidade Abolição, que mantêm a esperança de ver o território oficialmente reconhecido.
“Eu moro à beira da estrada porque quero voltar para cá. Eu sou daqui, nasci aqui, minha história é aqui”, relatou dona Maria Lúcia da Silva, de 68 anos, quilombola que vive em uma pequena área cercada por fazendas.
As famílias que já habitaram aquela terra hoje se encontram dispersas. Muitas deixaram o local em busca de melhores condições de vida, mas ainda alimentam o sonho de regressar e fazer das terras, novamente, um lar.
Ouro trocado por carne de boi
Maria Lúcia, que atualmente vive em uma área reduzida dentro do território quilombola, compartilhou com a reportagem do as dificuldades enfrentadas na infância.
Ela recorda um tempo em que a região era rica em ouro, mas a pobreza ainda predominava nas casas da comunidade. Enquanto os grandes fazendeiros acumulavam riquezas, o povo quilombola de Abolição trabalhava nas minas apenas para garantir o sustento.
“Nós não tínhamos roupa. A roça que tocávamos não dava nada, não tinha dinheiro, e era preciso trocar sementes para plantar. Foi uma vida sofrida [...] Aqui tinha muito ouro, aqui ainda tem muito ouro”, afirmou.
Segundo ela, seu pai armazenava ouro em sacos de cimento vazios, que depois eram entregues ao fazendeiro da região em troca de um boi. “Eram 15 kg, 20 kg de ouro pesados na balança usada para medir o gado. Aí ele chegava e dizia apenas: ‘Escolha um boi lá e matem para ele’”, completou o irmão de Maria Lúcia, Levino da Silva, de 70 anos.
Dona Maria, visivelmente emocionada, relembrou que, mesmo após abater o boi, muitas vezes sua família não tinha sequer sal em casa. “O que eu mais desejo é ter a nossa terra de volta, porque moramos aqui. Mas, quando chegamos perto da cerca de arame, o fazendeiro não nos deixa nem entrar, sendo que essa terra já foi nossa”, desabafou.
Incra promete demarcar área
Sobre a demarcação do Quilombo Abolição, o conversou com Raul Afonso, chefe da divisão de territórios quilombolas da Superintendência Regional do Incra, que detalhou o complexo processo necessário para a oficialização da terra. Segundo ele, a demarcação envolve diversas etapas técnicas e processos burocráticos.
“O que já realizamos até o momento é o relatório antropológico, que, por exemplo, traçará a árvore genealógica das famílias e identificará a localização de pontos de importância religiosa e cultural, como cemitérios”, explicou.
Ele destacou que, após a conclusão do estudo fundiário do perímetro do território, o próximo passo será a realização de levantamentos topográficos, seguidos da desapropriação das áreas e da indenização dos proprietários.
Leia também- Polícia fecha mineradora em Livramento e aplica multa de R$ 188 mil
“O Governo Federal sinalizou que, de fato, disponibilizará os recursos. Inclusive, já observamos isso em outros estados. [...] No entanto, não queremos criar a expectativa de que haverá recursos ilimitados para todas as desapropriações, especialmente devido aos altos valores desses imóveis”, completou.
O local já sofre os impactos das atividades de uma pedreira e das fazendas ao redor e, agora, será afetado também pela construção da ferrovia estadual, que passará diretamente por seu território.