O senador eleito Hamilton Mourão (Republicanos) pagou R$ 736.663,55 de sua campanha eleitoral para prestadores de serviços incompatíveis com as tarefas descritas nas notas fiscais apresentadas à Justiça eleitoral. Os recursos representam 20% do total gasto na campanha que levou o general ao Senado.
Mourão pagou R$ 435.893,62 à AKM Serviços de Limpeza e Construção Civil Ltda pelos serviços de divulgação, administração de pessoal e logística da campanha. Para a Advento RJ Desentupidora e Serviços Ltda, o desembolso foi de R$ 180.875,00 na contratação de promotoras e serviços de promoção da candidatura. No caso da empresa Cássia Bolsas, com sede em Guaíba, os R$ 119.894,93 foram pagos por serviços de panfletagem.
Contadores especialistas em lei eleitoral ouvidos pela reportagem do Sul21 dizem que a prática está “em completo desacordo” com as normas legais, “abrindo espaço para questionamentos”. Em pelo menos um caso, segundo esses especialistas, há indícios de tentativa de sonegação fiscal, porque houve emissão de notas em nome de outra empresa “com o intuito de pagar menos impostos”.
A advogada Raquel Machado, professora da Universidade Federal do Ceará e especialista em direito constitucional, diz que os pagamentos são, no mínimo, estranhos. “É claro que algumas empresas têm um amplo ramo de atuação, mas nesses casos relatados o nome indica claramente outra atividade. É possível questionar a legalidade desses pagamentos”, afirma.
Segundo a advogada Maritânia Dallagnol, especialista em direito eleitoral, pagar por serviços que não constam da lista de atribuições de uma empresa é uma prática que coloca em suspeição as contas do candidato. “A prática corriqueira é buscar empresas capacitadas para um determinado serviço. A contratação de quem não tem entre suas atribuições comerciais o objeto do contrato deve, de antemão, ser considerada suspeita”, diz a especialista.
A Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) serve para delimitar quais operações as empresas podem realizar e de qual segmento fazem parte. É possível escolher uma atividade principal, geralmente que gera mais valor, e outras subatividades secundárias relacionadas à natureza da operação. Microempreendedores individuais (MEI), por exemplo, não têm habilitação para intermediar mão de obra.
É o caso da Conecto Promo, empresa individual da maquiadora Fernanda Regert Melo escolhida pela campanha de Mourão para contratar promotoras de venda e modelos. A empresa não consta na prestação de contas do senador eleito porque as notas fiscais de serviço foram emitidas por uma desentupidora com sede em Niterói (RJ). A empresa, especializada em esgoto, emitiu quatro notas num espaço de 13 dias que somaram R$ 180 mil.
Procurada pela reportagem do Sul21, a dona da Advento RJ primeiro negou que a empresa fizesse intermediação de mão de obra na área de eventos. Depois, Danieli Carolini Leal de Souza lembrou-se que é sócia de Fernanda Regert Melo na agência de modelos Conecto Promo, embora a maquiadora esteja enquadrada na Receita Federal como empresária individual. Segundo o portal gov.br, o MEI não tem contrato social e não pode ter sócios.
“Tivemos de usar as notas fiscais da Advento pela limitação de faturamento dos empreendedores individuais. A Conecto Promo é minha agência aí no sul”, justificou a empresária. Souza e Melo foram colegas no gabinete do deputado estadual Coronel Zucco (Republicanos), onde trabalharam como assessoras parlamentares.
Segundo Souza, a CNAE da Advento empresa contempla a realização de serviços na área de eventos e promoções. A Receita Federal, entretanto, desmente essa informação: no registro de pessoa jurídica da Advento RJ consta como atividade principal serviços relacionados a esgoto. Nas nove atividades secundárias descritas no documento também não aparece atividade alguma relacionada a promoção de vendas. A empresa foi aberta no dia 27 de dezembro de 2021, em Niterói (RJ). Dois dias depois, a maquiadora Fernanda Regert Melo abriu a Conecto Promo em Porto Alegre.
Embora esteja no nome de Melo, a empresária Danieli Carolini Leal de Souza garante que a Conecto Promo é sua. A reportagem do Sul21 não conseguiu contato com a maquiadora Fernanda Regert de Melo. Os telefones da empresária constam como desabilitados.
“Contratar prestação de serviços que não se encontram no rol das atividades desenvolvidas pelas empresas é uma irregularidade, na medida em que elas não estão, em tese, aptas e licenciadas para tal pelo órgão responsável, que é a Receita Federal. Se efetivamente for demonstrada a realização do serviço, menos mal. Mas entendo que, especialmente em relação a essa empresa do Rio de Janeiro, trata-se de uma contratação irregular que deve ser cobrada pelo TRE sobre os motivos de ter feito dessa forma”, completa a advogada Maritânia Dallagnoll.
Outro advogado especialista em direito eleitoral, Marcelo Gayardi, vai além e diz que essas despesas estão em desacordo com a resolução 23.607/2019, do TSE, que regram a arrecadação e as despesas em campanhas eleitorais. “Considerando a presença de recursos públicos do fundo eleitoral, a prestação de contas precisa se ocupar não somente com a formalidade das declarações, mas também apurar a materialidade, isto é, se essas despesas de fato se relacionam com serviços efetivamente prestados”, afirma.
Não se trata de um caso isolado: quem mais recebeu recursos da campanha de Mourão foi a AKM. Nesse caso, repete-se o padrão de CNAE incompatível com o serviço contratado: embora a atividade principal seja de seleção e agenciamento de mão de obra, fica claro no registro de pessoa jurídica que se trata de uma empresa do ramo de construção civil e de reparos domésticos, além de limpeza.
A AKM recebeu R$ 435 mil em sete notas fiscais distribuídas por pouco mais de um mês. Entre os serviços prestados estão divulgação de campanha, administração de pessoal, transporte e logística de materiais de propaganda e mobilização. A empresa recebeu mais dinheiro que a agência que atuou na campanha de Mourão, a 99 Comunicação e Marketing, e do que a produtora de vídeo do general, a Beto Souza Filmes.
O dono da AKM, Alexandre Kohn Merladete, está sendo investigado pelo Ministério Público do Estado na operação Copa Livre, que apura denúncias de propina e superfaturamento em contratos de serviços de limpeza em hospitais de Canoas a partir de um relatório do Tribunal de Contas do Estado (TCE). A operação resultou no afastamento do então prefeito Jairo Jorge (PSD) do cargo, confirmado pela Justiça.
A GMS, empresa da qual Merladete aparece como sócio e que é de propriedade da sua ex-mulher, Gabriela Mestre Sangenito, foi contratada com dispensa de licitação suspeita de fraude. O contrato emergencial, de seis meses, somava R$ 3,38 milhões. A investigação iniciou em maio de 2021 após o TCE identificar um sobrepreço superior a R$ 1 milhão na contratação de Merladete e Sangenito pela prefeitura de Canoas. Os auditores do TCE descobriram, por fim, que GMS e AKM eram a mesma empresa.
Também descobriram que a GMS, até dois meses antes da contratação emergencial, vendia apenas produtos de varejo, não tendo relação nenhuma com a prestação de serviços na área de higiene e limpeza. A empresa tinha sede em Magistério, distrito de Balneário Pinhal, mas nunca foi cadastrada pelos donos no município.
A AKM, por sua vez, tem vários endereços informados em Porto Alegre, onde não há qualquer referência a atividades empresariais. Os técnicos do TCE concluíram que a GMS/AKM “não apresentava requisitos societários e fiscais para a execução do objeto contratado”. O empresário Alexandre Kohn Merladete não atendeu aos telefonemas da reportagem e nem respondeu aos questionamentos enviados a ele pelo Sul21.
O caso da empresária Cassia Oliveira Bastos é o mais emblemático: ela recebeu R$ 120 mil em quatro notas fiscais emitidas num intervalo de dois dias, entre 28 e 30 de setembro, para realizar “serviços de panfletagem”. O pagamento se deu a dois dias da eleição. Bastos é microempreendedora individual e atua no comércio de bolsas em Guaíba, na região metropolitana de Porto Alegre.
A atividade principal da MEI é treinamento em desenvolvimento profissional e gerencial. Pela legislação, microempreendedores individuais podem faturar até um limite de R$ 81 mil por ano. E não podem ter mais do que um funcionário cadastrado na folha de pagamento, além do próprio empresário. O valor pago nesse caso, observam os contadores ouvidos pela reportagem, está além do que permite a lei e parecem “distorcidos” em relação ao serviço prestado, que deveria envolver no máximo duas pessoas.
Vinculada ao Progressistas, partido da base de apoio de Mourão, Bastos foi candidata a vereadora em Guaíba em 2016, quando o partido ainda se chamava PP, mas obteve apenas 102 votos. Com a alcunha de Cassia Bolsas, não se elegeu, mas quatro anos mais tarde ganhou um cargo de assessora parlamentar na Câmara de Vereadores da cidade.
A reportagem do Sul21 entrou em contato com Bastos, que confirmou a atuação na campanha de Mourão. A assessora, entretanto, não quis comentar que atividades desempenhava e nem confirmar os valores recebidos pela sua empresa.
Questionada pela reportagem na sexta-feira (14) e na segunda-feira (17), a assessoria do vice-presidente Hamilton Mourão não respondeu às perguntas enviadas por e-mail até o fechamento desta edição.
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