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Política Terça-feira, 16 de Janeiro de 2024, 09:00 - A | A

Terça-feira, 16 de Janeiro de 2024, 09h:00 - A | A

Negociação sob suspeita

Sem parecer da PGE, Governo de MT comprou aeronaves sem licitação; documentos revelam ligações de amizade

Na minuta do protocolo de intenções havia definição de que a aeronave deveria ser um modelo 550 Citation Bravo

Edina Araújo & Gislaine Morais/VGN

O ex-piloto e empresário Tony Camargo, nome completo Antonio Martinez Pompeo de Camargo, se beneficiou da venda de aviões antigos ao Governo do Estado de Mato Grosso sem licitação. Ele é conhecido por sua proximidade com o governador Mauro Mendes (União Brasil) e a primeira-dama Virgínia Mendes, frequentemente compartilhando elogios e fotos com eles nas redes sociais. Foto final da matéria.

Residindo em Miami, EUA, Tony manteve laços estreitos de amizade com Mauro Carvalho, ex-secretário da Casa Civil de Mato Grosso. Como dono da South Regional Aviation Enterprises Inc., empresa americana especializada na revenda de aviões, Tony vendeu três aeronaves ao governo estadual, financiadas com dinheiro do acordo de leniência da Construtora Camargo Corrêa, oriundo de corrupção. 

Entre os aviões vendidos por Tony e sua empresa, está a UTI aérea utilizada pelo governador Mauro Mendes para participar da festa da JBS, na divisa entre Goiás e Mato Grosso. Veja matéria relacionada - Escândalo no Céu: Governador de Mato Grosso usa avião de UTI do Estado para “Festança VIP de magnata da JBS”

Tony e Carvalho se conhecem desde 2003, tendo compartilhado momentos sociais e familiares significativos. Também em 2003, em agosto, Gisella Bojikian, mulher de Tony, convidou Mônica para comemorar o aniversário quando estava de passagem por Cuiabá. Na época, o evento foi destaque nas colunas sociais de jornais da capital mato-grossense.

Em 2017, a amizade continuou entre o casal. Tony posou para fotos junto com Mauro Carvalho em um jantar realizado entre as famílias, em Boynton Beach, na Flórida, onde moram Tony e Giselle atualmente. Veja foto publicada no Instagram de Tony.

A ligação entre amigos, família e Estado na compra dos aviões, se estende a Cibelle Bojikian, irmã de Gisella Bojikian, esposa de Tony, que pagou a taxa de vistoria de uma das aeronaves vendidas por Tony ao governo.

Pressão para comprar aeronaves - A confusão entre família, Estado e compra de aeronaves não para por aí. Foi o próprio Mauro Carvalho o responsável por pressionar o Tribunal de Justiça de Mato Grosso, para liberar a compra de um dos três aviões da empresa de Tony Camargo.

No dia 5 de março de 2020, Mauro Carvalho enviou um ofício solicitando a compra da aeronave com base em uma proposta de projeto vinda do Ciopaer, onde a sugestão é pela importação de um Citation Bravo. Foi também da Casa Civil, comandada por Mauro Carvalho, que saiu parte do procedimento de aquisição do Cheyenne, vendido pela South Regional Aviation Enterprises Inc ao governo estadual.

O governo pagou, em setembro de 2020, US$750 mil (R$4,2 milhões) pelo Cheyenne de Tony, que foi fabricado em 1979. O jatinho Cessna Citation, fabricado em 1997 foi comprado em 23 de abril deste ano, por US$1,5 milhão (R$8,5 milhões). Tony vendeu para o governo um terceiro avião por um valor de R$2.9 milhões.

Comparativo feito em sites especializados em aviação mostra que o Cheyenne de R$4 milhões e o jatinho de R$8,5 milhões foram comprados por valores incomuns. O site especializado em comercialização de aeronaves, Controller.com, apresenta aeronaves do mesmo modelo e fabricadas recentemente que estão à venda por valores menores.

É possível encontrar, por exemplo, um Citation que custa US$898 mil, fabricado no ano 2000. Três anos mais novo que o jatinho do mesmo modelo comprado pelo governo por US$602 mil mais caro. Também é possível encontrar modelos mais recentes, como este Cheyenne III fabricado em 1981, vendido por US$550 mil. Três anos mais novo e US$200 mil mais barato que o Cheyenne II comprado pelo governo.

O retorno do dinheiro da corrupção - O dinheiro para essas compras veio do combate à corrupção, posteriormente usado em negociações feitas sem licitação. Em menos de um ano, Tony lucrou ao menos R$12 milhões com a venda de aeronaves fabricadas antes dos anos 2000, como revelam documentos obtidos pelo .

As aquisições que beneficiaram o amigo do secretário da Casa Civil foram feitas com o aval e com recursos disponibilizados pelo Ministério Público e pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso. A compra do Cheyenne foi feita graças a recursos que vieram de um acordo de leniência firmado pela Camargo Corrêa com o governo de Mato Grosso.

A princípio, cerca de R$ 12 milhões seriam utilizados para a construção da nova sede da Procuradoria Geral do Estado (PGE), mas com a pandemia de covid-19 a empresa aceitou antecipar US$ 760 mil para a compra de uma aeronave que seria utilizada para transporte de pacientes por meio de UTI aérea.

A compra do jatinho Cessna Citation foi feita através de um protocolo de intenções firmado pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT) com a Secretaria de Segurança Pública (Sesp) para reservar dinheiro de colaborações premiadas e ações penais.

O dinheiro da compra do jatinho veio diretamente da Sétima Vara Criminal do TJMT, responsável por processos de corrupção em Mato Grosso. A titular da vara, a juíza Ana Cristina Mendes, assinou em dezembro de 2020, o protocolo de intenções para realizar a compra do jatinho. Ana Cristina é esposa do coronel Alexandre Correa Mendes, comandante da Polícia Militar de Mato Grosso, nomeado pelo governador Mauro Mendes, em abril de 2022.

Os valores usados na compra do avião do amigo de Mauro foram recuperados de grandes escândalos de corrupção em gestões anteriores e das gestões do ex-deputado José Geraldo Riva - à frente da Assembleia Legislativa de Mato Grosso. Com isso, R$ 2.760.310,34 foram repassados imediatamente aos cofres do Estado.

Documentos obtidos pelo , mostram que o governo também comprou uma terceira aeronave da South Regional, sem nenhum intermediário. A certidão do N8CF, que no Brasil recebeu o prefixo PS-CIO, mostra que a aeronave custou R$2.999.433,22, comprada e importada diretamente pelo governo estadual.

Um jatinho para os poderes - Desde a primeira tentativa de Mauro Carvalho de comprar o jatinho, no início de 2020, até a definição pelo Tribunal de Justiça pela aquisição passaram-se cerca de seis meses. Na primeira tentativa, o pedido do chefe da Casa Civil foi rejeitado pelo presidente do TJMT na época, Carlos Alberto Alves da Rocha, sob a justificativa de que a pandemia de covid-19 demandaria mais cuidado com os recursos públicos no Estado.

“Diante do cenário que se apresenta, o Poder Judiciário é chamado a dar a sua contribuição ao erário público, uma vez que, nesse momento de restrição financeira, haverá a necessidade de contingenciamento de valores orçamentários para serem realocados em projetos prioritários da Alta Administração e que sejam de interesse para a sociedade, de modo que, por ora, não vislumbro como oportuna a presente aquisição”, afirmou Carlos Alberto em decisão assinada em abril de 2020.

A opinião do desembargador muda durante o ano. Mesmo com a pandemia provocando uma escalada de mortes em Mato Grosso, o então presidente do TJMT determina em setembro a confecção de minuta do protocolo de intenções e autoriza, em dezembro de 2020, a compra da aeronave solicitada pela Casa Civil.

Na minuta do protocolo de intenções, havia a definição de que a aeronave deveria ser um modelo 550 Citation Bravo, fabricado no ano 1997, pela Cessna Aircraft, com motores P&W e modelo PW530A. Exatamente a mesma descrição do jatinho que pertencia a South Regional Aviation Enterprises Inc., de Tony Camargo, e que seria comprado pelo governo. Indicativo de direcionamento de licitação.

De acordo com registros de sites internacionais especializados em aviação dos Estados Unidos, o Citation de 1997 de Tony Camargo, de prefixo N100RJ, é uma aeronave de segunda mão, que já pertenceu ao banco da multinacional americana Wells Fargo e Company e a empresa JCD-GP LLC.

Aquisições obscuras - As aquisições do governo estadual podem ser rastreadas através de cruzamento de dados da Agência Nacional de Aviação (Anac), da Federal Aviation Administrations (FAA) dos Estados Unidos e com informações do Diário Oficial do Estado de Mato Grosso (DOE-MT).

Os dados da FAA indicam que a South Regional Aviation possuiu sete aeronaves em solo americano. Destas, três aeronaves foram exportadas para o Brasil e uma delas, o jatinho Cessna Citation, teve o registro cancelado, mas sem a definição de exportação.

A melhor forma de identificar o caminho percorrido por uma aeronave exportada é pelo número de série, uma vez que o prefixo muda quando o avião vem para o Brasil. Nos Estados Unidos, aeronaves recebem prefixos que começam pela letra “N”. Já no Brasil os prefixos iniciam geralmente pelas letras “PT” ou “PS”.

A primeira aeronave exportada por Tony e adquirida pelo governo de Mato Grosso foi o Cheyenne de prefixo americano N8CF. Ao chegar ao Brasil, em dezembro de 2019, o Cheyenne foi registrado com o prefixo PS-CIO pela Secretaria de Segurança Pública de Mato Grosso (Sesp-MT). Uma publicação de 17 de março de 2020 cita o PS-CIO como aeronave ainda em processo de nacionalização pela Sesp.

De fato, o número de série da aeronave (31T-8020062) é o mesmo nos registros americanos e brasileiros. O N8CF de Tony Camargo que agora pertence à Sesp também aparece em outro registro, desta vez em um site sobre assuntos policiais. Na qual o chefe do Ciopaer, o coronel Juliano Chiroli, explica que o Cheyenne N8CF foi “adquirido” pelo governo para ser utilizado em serviços de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) área.

O processo de pagamento de outro Cheynne vendido por Tony, o N90WG, demonstra que foram gastos R$4.240.800,00 com recursos do acordo de leniência da Camargo Corrêa.

O cheyenne N90WG foi exportado por Tony Camargo em setembro de 2020, data próxima do pagamento pelo governo estadual. A aeronave já foi nacionalizada e atualmente consta dos registros da Anac como pertencente à Sesp-MT. No Brasil, o avião recebeu o prefixo PS-SEG. O número de série (31T-7920044) nos registros americanos e brasileiros também é o mesmo.

O Cheyenne N90WG aparece em um registro do governo do Estado, em publicação do dia 30 de dezembro de 2020, na qual o Fundo Estadual de Saúde realiza a transferência da aeronave para o Ciopaer. Na publicação, há a definição do valor da aeronave, que custou US$750 mil ao governo.

O Cheyenne N90WG também aparece no Facebook do próprio Tony Camargo, que publicou foto do avião sendo preparado para ser transferido para o Brasil. “Chegando a hora da partida rumo a Brasil… Enfrentamento às novas batalhas contra o Maldito vírus COVID 19”, escreveu o empresário.

O N90WG (ou PS-SEG, no prefixo brasileiro) é um Cheyenne rodado, que passou por várias mãos. A aeronave, que tem mais de 40 anos, pertencia à empresa do piloto Emerson Fittipaldi até 1999, quando foi exportada e teve seu registro brasileiro cancelado, segundo registros da Anac. No final de 2020, quando o avião foi importado pelo governo de Mato Grosso, a matrícula brasileira foi reativada.

A falta de informações sobre as aquisições do governo ocorreu também no caso do jatinho Cessna Citation. Na página onde deveria estar o contrato firmado entre o governo e a South Regional Aviation foi disponibilizada apenas a ordem de empenho para pagamento. No caso do Cheyenne N90WG, o governo também disponibilizou apenas o empenho.

Tanto no caso do jatinho Cessna quanto no caso dos cheyennes, a empresa de Tony Camargo aparece com dados que confundem endereço americano e brasileiro. A South Regional é registrada como sendo de  Boynton Beach, Daystar Ridge Point número 8661, mas tendo como município a palavra “ESTADO” e como unidade federativa “Mato Grosso”.

Uma das alegações que o governo utilizou para justificar o alto preço das aquisições foi em razão das UTI’s que seriam instaladas nos três aviões. Mas as especificações técnicas contidas no certificado de exportação do cheyenne PS-CIO (N8CF) e do cheyenne PS-SEG (N90WG) indicam que os aviões foram comprados sem equipamento de UTI.

Decisão do CNJ - A repercussão sobre a compra do jatinho alcançou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A ministra Maria Thereza e Assis Moura suspendeu no dia 30 de abril o protocolo de intenções de compra firmado pelo TJMT com o governo estadual.

A corregedora do CNJ alegou que já existe decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, que impede que valores recuperados através de delações, multas e restituição, sejam direcionados ao Estado através de TACs (Termo de Ajustamento de Conduta). Maria Thereza também classificou como “grave” a compra de uma aeronave de luxo para atender a demanda do judiciário.

”Por bom senso e, até mesmo, por moralidade, os órgãos encarregados da persecução penal não devem ter interesse na destinação dos valores confiscados”, afirmou a ministra.

Depois da suspensão, o TJMT entrou com recurso para validar a compra sob a alegação de que a decisão de adquirir o jatinho foi anterior à decisão do STF. Ao examinar o pedido, no dia 22 de maio, a ministra do CNJ informou que não há razões para impedir a compra e liberou que o dinheiro das delações fosse usado na aquisição.

O que também chama atenção é o fato da manifestação do governo do Estado à Sétima Vara Criminal, no processo que determinou a liberação do recurso para a compra da aeronave. Após o judiciário solicitar a manifestação da PGE, o governo afirmou que o pedido foi subscrito pelo secretário Chefe da Casa Civil, e que por isso “foi dispensado o parecer da Procuradoria-Geral do Estado de Mato Grosso.

O governo afirmou que o pedido foi subscrito pelo secretário Chefe da Casa Civil, e que por isso foi dispensado o parecer da Procuradoria-Geral do Estado de Mato Grosso

Outro lado – A reportagem solicitou explicação sobre porque não há um parecer da Procuradoria Geral do Estado (PGE/MT), para a compra dos aviões. Porém, não houve retorno.

O Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT), por meio da assessoria de Comunicação se limitou a responder que a “decisão é autoexplicativa. Antes estávamos em plena pandemia”.

Já o Ministério Público (MPMT), encaminhou nota dizendo: “Em resposta à demanda apresentada, informamos que inexiste ato de anuência ou concordância do Ministério Público do Estado de Mato Grosso com a aquisição das aeronaves, pois escapa de sua atribuição institucional”.

 

 

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