Presidente da República, Jair Bolsonaro ( Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)
O orçamento secreto de Bolsonaro, com o uso de R$ 3 bilhões em verbas do Orçamento Federal de 2020 para contemplar ações patrocinadas por um grupo de parlamentares aliados sem a devida transparência, revelado pelo Estadão, está sendo comparado por especialistas ao escândalo dos "Anões do Orçamento", que no início dos anos 1990 culminou na instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) e resultou no afastamento de seis congressistas. Outros quatro renunciaram ao mandato antes da conclusão das investigações.
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“Vejo semelhança no debate atual com o escândalo denunciado em 1993 e 1994 na CPI dos Anões do Orçamento”, afirma a professora Élida Graziane Pinto, procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo.
Crítica dos “dribles” para turbinar os recursos de emendas parlamentares, ela afirma que o resultado tem sido a menor transparência na destinação dos recursos do governo.
“Como estamos no reino do voluntarismo fiscal de curto prazo eleitoral, a transparência está, sim, menor. O trato orçamentário no Brasil está menos republicano”, afirma Élida.
Parlamentares da oposição já falam em pedir que Ministério Público Federal (MPF) e Tribunal de Contas da União (TCU) investiguem o caso.
No início dos anos 1990, a CPI do Orçamento investigou um esquema de uso de emendas parlamentares para engordar as contas bancárias de congressistas. As ações eram incluídas nas despesas do governo durante a votação do Orçamento e, depois, os parlamentares usavam sua influência para direcionar as concorrências e favorecer empreiteiras, que brindavam seus “patrocinadores” com uma parte do valor.
O caso ficou conhecido como "Anões do Orçamento" devido ao envolvimento de parlamentares de menor notoriedade à época. Segundo documentos históricos da Câmara, as emendas de relator do Orçamento tiveram um papel central no esquema dos anos 90. Elas eram conhecidas poucos instantes antes da votação e eram usadas para turbinar os recursos das emendas.
Sob o Governo Jair Bolsonaro, as emendas de relator voltaram com nova roupagem. Um identificador específico foi criado para elas em 2019, para valer no Orçamento de 2020. Um único parlamentar direciona os recursos que, na prática, são indicados por outros congressistas aliados do governo, sem que haja uma “digital” evidente desse direcionamento.
Pelas regras atuais, o Congresso pode direcionar uma área genérica de investimento desse tipo de recurso proveniente das emendas RP9. Mas a definição dos municípios que irão receber os recursos e quais os projetos específicos serão executados é exclusiva do Executivo.
O Congresso até tentou impor o destino dessas emendas, mas Bolsonaro vetou por “contrariar o interesse público” e estimular o “personalismo”.
Como revelou o Estadão, porém, ele passou a ignorar o próprio ato após seu casamento com o Centrão e permitiu que um grupo de deputados e senadores aliados impusesse onde milhões de reais deveriam ser aplicados, usurpando uma atribuição do Executivo. O veto nunca foi derrubado pelo Congresso.
O flagrante do manejo sem controle de dinheiro público aparece num conjunto de 101 ofícios enviados por deputados e senadores ao Ministério do Desenvolvimento Regional e órgãos vinculados, aos quais o Estadão teve acesso, para indicar como eles preferiam usar os recursos. “Minha cota”, “fui contemplado” e “recursos a mim reservados” eram termos frequentes nos ofícios dos parlamentares.
“Este caso vai além das emendas. Nas emendas, o valor é igual para todos e o pagamento é obrigatório. Mas no ‘tratoraço’, o governo abriu para alguns parlamentares do seu interesse a possibilidade de indicar onde desejariam alocar recursos (além das emendas tradicionais) ”, afirmou Gil Castelo Branco, da ONG Contas Abertas.
“O que seria destinado por critérios técnicos passa a obedecer a interesses políticos paroquiais. E sem transparência, pois apenas as pastas sabem quem indicou o que para onde. É um mensalão disfarçado de emendas parlamentares”, complementou ele.
A equipe econômica é crítica desse instrumento porque engessa ainda mais as despesas e nem sempre resulta em gastos eficientes, isto é, para atender às prioridades do momento. No caso dos R$ 3 bilhões, os recursos bancaram ações como compra de máquinas e tratores a preços acima da tabela de referência do governo, em um ano já marcado pela pandemia de covid-19 e pela necessidade de dar ajuda financeira aos mais vulneráveis. Por essa razão o escândalo ganhou o nome de “tratoraço”.
Em 2021, as emendas de relator também já se mostraram um problema depois que os parlamentares recorreram a esse expediente para turbinar suas verbas em R$ 35,5 bilhões. Para isso, tiraram recursos de praticamente todos os ministérios e drenaram dinheiro de ações estratégicas, como a realização do Censo Demográfico, a mais ampla pesquisa estatística do País e que até agora não tem verba assegurada para ir a campo. O governo precisou vetar R$ 19 bilhões das emendas para conseguir manter sua própria máquina funcionando e evitar risco de calote em benefícios previdenciários.
O líder da oposição na Câmara dos Deputados, Alessandro Molon (PSB-RJ), afirma que o caso revelado pelo Estadão é “gravíssimo” e fere pressupostos de publicidade e transparência do Orçamento. “Estão sendo usados critérios secretos e seguindo trâmites escusos para administrar esses recursos”, critica.
Para ele, o uso das emendas de relator é “discricionário”, diferentemente das emendas impositivas a que cada parlamentar tem direito anualmente dentro do Orçamento. “As emendas impositivas têm o mesmo valor para todos”, pontua.
Enquanto cada congressista tem cerca de R$ 8 milhões dentro dessa regra, aliados multiplicam suas indicações por meio das emendas de relator, como o ex-presidente do Senado Davi Alcolumbre (DEM-AP), que direcionou R$ 277 milhões por essa via.
O líder da Minoria da Câmara, deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ), informou que vai entrar com representação no Tribunal de Contas da União (TCU) para que a Corte instaure auditoria e apure “todas as circunstâncias” a respeito do “orçamento secreto” criado pelo governo Bolsonaro.
Na peça, Freixo diz que não bastasse a postura do governo diante da pandemia, a população brasileira foi surpreendida com a revelação de “esquema” do governo federal “para auxiliar base de sustentação” no Congresso.
“É grave a postura adotada pelo governo federal, sem nenhum zelo com a coisa pública. Enquanto isso, tais verbas poderiam ter sido utilizadas no combate a pandemia da covid-19, sobretudo na compra de vacinas”, destaca.
A representação será feita contra o presidente Jair Bolsonaro, o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, e o presidente da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), Marcelo Moreira.
Técnicos do Congresso avaliam de forma reservada que dificilmente o governo vai conseguir se desvencilhar da emenda de relator, que é conhecida no jargão orçamentário como RP9, uma vez que esse dispositivo já está “consagrado” entre os parlamentares como uma forma de ampliar seu controle sobre o Orçamento.
“Tantas regras superpostas e burladas infantilizam o trato das contas públicas no nosso País”, critica a professora Élida Pinto. Ela defende um ajuste fiscal amplo, que fortaleça o planejamento das contas públicas e ao mesmo tempo permita a execução do Orçamento conforme esse plano, blindando as despesas contra “tantas capturas e iniquidades”.
A líder do PSOL na Câmara, Talíria Petrone (RJ), criticou a “compra de apoio” do Centrão pelo governo Jair Bolsonaro em um momento em que o País assiste ao aumento contínuo no número de casos e mortes por covid-19.
“Bolsonaro comprando apoio no Congresso, com Orçamento bilionário, enquanto passamos dos 420 mil mortos. Queria ver esse empenho todo para acelerar a vacinação e garantir lockdown com direitos”, escreveu em sua conta no Twitter.
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