Estudantes que participaram no fim de semana da edição de 2018 dos Jogos Jurídicos Estaduais, que reuniu em Petrópolis equipes esportivas e torcidas de faculdades de Direito do estado do Rio de Janeiro, relataram episódios de racismo durante o evento. Segundo alunos ouvidos pelo GLOBO, atletas negros e torcedores da Uerj, da UFF e da Universidade Católica de Petrópolis (UCP) foram ofendidos em três partidas de diferentes modalidades entre sábado e domingo por integrantes da torcida da PUC-Rio. De acordo com os estudantes, um atleta negro teria sido atingido por uma casca de banana; um grupo de rapazes teria imitado macacos com sons gruturais ao ser alvo de gritos que os chamavam de racistas; e outra estudante teria ainda sido chamada de "macaca".
De acordo com o movimento Jogos Sem Racismo, a Liga Jurídica Estadual determinou punições à delegação da PUC. No primeiro momento, com multa de R$ 500 e suspensão da torcida em um jogo. Mas, com a reincidência, o título de campeão geral foi retirado da PUC e a delegação da universidade foi suspensa por um ano, ficando afastada dos Jogos Jurídicos Estaduais de 2019.
Os relatos dos dois lados, no entanto, diferem em pontos-chave, ainda que histórias de preconceito e insultos raciais há muito tempo pairem sobre esse tipo de evento universitário, em que estudantes de diferentes contextos e classes sociais se encontram num clima altamente competitivo. Segundo Raíza Uzeda, aluna de Direito da Uerj e membro do coletivo negro da faculdade, o primeiro incidente ocorreu no sábado, ao final de uma partida de futebol masculino entre os times da PUC e da UCP. Uma jovem que pertencia à torcida da PUC teria jogado uma casca de banana sobre um jogador da equipe adversária.
Ela conta que o aluno da UCP envolvido deixou Petrópolis no sábado (02.06), um dia antes do fim do torneio, para retornar à sua cidade-natal:
— Ele está muito abalado, muito triste. Estava tão mal que foi embora.
Entre alunos da PUC, no entanto, os relatos são de que este episódio não envolveu alunas da instituição, mas sim quatro namoradas de atletas que disputavam a partida de futebol. Segundo Matheus Vellasco, aluno da faculdade que estava presente no evento mas não presenciou as agressões, as jovens teriam negado a estudantes da faculdade que tivessem intenções racistas: o relato delas seria de que, acuadas durante um confronto entre torcidas com provocações mútuas, elas lançaram o que tinham nas mãos, uma garrafa de água e uma casca de banana aleatoriamente para se proteger, sem nem mesmo notar que havia negros por perto. Matheus reforça que reprova qualquer ato de racismo e diz que, caso os relatos de racismo sejam confirmados, a intenção dos seus colegas era sujeitar os responsáveis às devidas punições previstas pelas regras do evento.
No domingo (03.06), a Atlética (iniciativa estudantil que se encarrega de organizar a participação de uma instituição no evento) de Direito da PUC-Rio publicou numa rede social que a próxima partida de futsal masculino, que ocorreria no mesmo dia, não teria torcida "como forma de repúdio ao ato de ter sido jogada uma banana na delegação da UCP". Ainda segundo a publicação, o grupo estudantil que representa os alunos da instituição na competição "é contra qualquer tipo de atitude discriminatória, de qualquer tipo, a qualquer pessoa" e estava disposto a "lutar contra isso".
O GLOBO tentou fazer contato com a Presidência da Atlética de Direito da PUC, mas não obteve retorno. Já a Atlética de Direito da Uerj declarou repudiar totalmente os fatos ocorridos, dizendo que estava ainda apurando mais informações para, fora do âmbito criminal, analisar a punição a ser aplicada aos responsáveis. O DCE da PUC informou que está “apurando o ocorrido, buscando relatos de quem estava no evento”, antes de se manifestar publicamente.
Em comunicado, o professor Ricardo Lodi Ribeiro, diretor da Faculdade de Direito da Uerj, se solidarizou com as vítimas, destacando que no “Estado Democrático de Direito não são mais admissíveis atos como estes, em especial vindo de estudantes de Direito, o que exige, considerando ser a prática criminosa, que sejam amplamente investigados e, assegurado o contraditório e a ampla defesa, sejam os culpados exemplarmente punidos para que tais condutas abomináveis não voltem a acontecer no ambiente universitário”.
TENSÃO ENTRE TORCIDAS - No domingo, a história sobre o aluno da UCP atingido por uma casca de banana já havia corrido entre as torcidas — as maiores chegam a ter centenas de pessoas, entre estudantes e simpatizantes de cada instituição de ensino. Em reação ao episódio do dia anterior, um jogo de basquete entre Uerj e PUC acabou com um clima tenso na hora de as torcidas deixarem o estádio. Diversos membros da torcida da faculdade pública começaram a gritar em massa contra os adversários (entoando cantos como "A PUC é racista"). Um vídeo obtido pelo GLOBO mostra que a multidão não chega ao confronto físico. Mas, segundo Raíza, diversos integrantes da torcida da PUC "debocharam do nosso grito mostrando o dedo do meio e vaiando".
Ela diz ter visto três alunos batendo no peito para imitar macacos. Uma história muito semelhante é contada por Lucas Ferreira, também estudante da Uerj. Constrangido com a postura dos jovens, que ele não conhecia, diz que foi cobrar explicações deles.
— A PUC ganhou e o pessoal começou a passar por trás de mim em direção à saída. Quando olhei para trás, vi duas pessoas imitando macacos e fazendo sons de "uh-uh-uh". Fui até eles e começou uma confusão. Um dos meninos negou, mas depois que ele passou pela porta de segurança, ele olhou para mim e riu, dizendo "e aí, vai fazer o que agora?". Tudo foi claramente direcionado à torcida da Uerj — conta o estudante.
Aluno da faculdade de Direito da Uerj desde 2013, Lucas relatou que já na sua época de calouro ouvia insultos sendo direcionados à instituição. A universidade foi a primeira do país a adotar o sistema de cotas raciais e, por isso, foi repetidamente chamada de "Congo" por estudantes de outras universidades na sua presença, segundo ele.
Os relatos de racismo no fim de semana se prolongam ainda a um terceiro jogo, desta vez de handebol feminino, que ocorreu ontem depois da partida de basquete onde as torcidas se confrontaram. Uma atleta da UFF teria sido chamada de "macaca" por outro membro da torcida da PUC. A informação chegou ao GLOBO por meio do coletivo negro da Uerj, e dezenas de alunos repetiam a história nas redes sociais. Em um vídeo divulgado na internet, o time da UFF grita "racistas não passarão" em protesto contra a torcida da universidade católica. A estudante Mariana Ayodeli, da UFF, estava presente no jogo em que a confusão aconteceu. Ela relatou ter assistido, da torcida, à reação da jogadora de handebol ofendida por um grito de "macaca" da arquibancada adversária:
— Como sempre, ambas as torcidas estavam exaltadas, chamando as jogadoras, fazendo provocações e dizendo que elas não jogavam bem. A jogadora do meu time que fica no canto da quadra, muito perto de onde estava a torcida, se manteve concentrada no jogo, mesmo com pessoas da torcida claramente lhe fazendo provocações pessoais. No entanto, houve um momento em que a expressão corporal dela mudou durante as provocações. Ela aparentemente começou a chorar e foi até a nossa técnica. Mas, antes de sair de quadra, relatou o que tinha acontecido a outra jogadora do time, que, por sua vez, questionou a torcida e relatou à mesa de delegados e árbitros que haviam chamado a primeira jogadora de "macaca".
ÂNIMOS À FLOR DA PELE - Os Jogos Jurídicos Estaduais no Rio de Janeiro acontecem anualmente. Nesta edição, foram quatro dias consecutivos de competições esportivas durante o dia e festas madrugada adentro, de quinta-feira a sábado. Os relatos de torcidas que entoam cantos preconceituosos são antigos — frequentemente com músicas nada politicamente corretas para se autovalorizar e denegrir os adversários —, e os alunos da Uerj se queixam de expressões racistas da delegação da PUC, pelo menos, desde o ano passado. Raíza é uma das fundadoras de uma campanha criada há um ano para extinguir o racismo da competição. Segundo ela, também aconteceram casos de homofobia neste ano, mas os mais graves foram os de racismo.
O clima de acirrada competição, o alto consumo de bebidas alcoólicas e as poucas horas de sono ajudam a colocar os ânimos à flor da pele durante estes eventos universitários. Segundo o "Diário de Petrópolis", a festa de abertura dos Jogos Jurídicos, na noite de quinta-feira, incomodou moradores do entorno devido ao "som tão alto que fez vibrar janelas de residências" e ao trânsito caótico.
Os alunos explicam que as instituições e o corpo docente não se envolvem em nenhuma fase da organização dos Jogos Jurídicos. Todas as providências são de responsabilidade das Atléticas de cada universidade, que, juntas, formam a Liga Jurídica, no caso do evento envolvendo as faculdades de Direito.
Segundo Matheus, que até o ano passado era presidente da Atlética de Direito da PUC-Rio, os alunos que organizam esses eventos em várias faculdades vêm se engajando em campanhas para eliminar gritos de torcida com traços de preconceito.
— Já na minha gestão havia uma iniciativa para excluir músicas ou gestos que pudessem remeter a atos racistas, homofóbicos e machistas. Antigamente, isso existia em várias faculdades, que há um tempo vêm entrando neste mesmo movimento. O Estatuto da competição prevê punições para determinados atos como esses, e os responsáveis poderiam ser banidos dos jogos e dos eventos sociais da faculdade. Não é, de fato, o perfil que a gente procura nem quer para as torcidas.
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