Apesar de ser um processo natural, a morte ainda é um assunto a ser superado por muitas pessoas em todo o mundo. Mas há uma brasileira que, mesmo temendo os momentos finais, se sente atraída pela arte expressa em túmulos e objetos ornamentais funerários. E também pela história que eles contam.
Nascida e criada em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, Ivi Pivetta Vitera, 30, é mestra em design de produtos e apaixonada pela arte tumular, também chamada de arte funerária. Desde criança, quando visitava cemitérios, focava sua atenção aos ornamentos, bustos, fotos e detalhes que compõem as sepulturas. E ficava imaginando as histórias por trás dos objetos.
Quando se mudou para Pelotas, no ano passado, o interesse de Ivi pela história se intensificou. O município é conhecido por sua riqueza arquitetônica e patrimonial. Segundo o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), Pelotas possui um dos maiores acervos de estilo eclético do Brasil, com 1.300 prédios inventariados, o que atiçou ainda mais a sua curiosidade, segundo ela conta, em depoimento ao UOL.
"Fui incentivada pelo meu noivo, Germano, a registrar as visitas que fazia aos cemitérios. No começo, eu registrava tudo em fotos e postava no Instagram. Como imagens em um álbum. A ideia de me engajar na limpeza veio depois, ao me deparar com o péssimo estado de conservação dos túmulos.
Um dia, eu chamei um Uber para me pegar em casa. Quando entrei no carro, ele comentou comigo que o poeta Lobo da Costa havia morrido bem ali. Dá para imaginar? Ele morreu em frente à minha casa e isso aguçou minha curiosidade.
Fomos visitar o túmulo dele e estava bem ruim, coberto de limo. Resolvemos gravar em vídeo a limpeza. Eu já tinha criado uma página no Instagram, mas o Germano deu a ideia de abrir um perfil no TikTok e postar lá.
O vídeo bombou e, em menos de uma semana, alcançou mais de 2,7 milhões de visualizações. A partir daí, passei a ser chamada nas redes de 'influencer da morte' e os registros não pararam mais.
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Aquilo me empolgou. Fiquei surpresa em saber que tanta gente poderia ser 'estranha' como eu, porque sempre diziam isso para mim, que eu era 'estranha' pela minha paixão pela arte tumular. E foi muito legal saber que as pessoas também se interessam pela história, pelos detalhes guardados em lápides e ornamentos.
Então, eu e meu noivo começamos a fazer pequenas viagens a cidades pequenas aqui do Rio Grande do Sul, em busca de cemitérios onde podemos descobrir histórias interessantes. Os detalhes estéticos são os primeiros a chamar minha atenção.
O meu foco não é apenas nas figuras ilustres. Também encontro e limpo túmulos de pessoas desconhecidas, muitas delas já até sem parentes vivos, talvez por isso o abandono. Ninguém as visita mais.
Ferramentas de trabalho
Usamos poucas ferramentas nesse trabalho. Geralmente, um borrifador com água e sabão neutro diluído, uma escova de cerdas macias e garrafinhas de água para a retirada do sabão.
Da primeira vez usamos um produto que, depois, descobrimos ser abrasivo. A partir de então, só limpamos com água e sabão neutro. Já me sugeriram escovas com cerdas de aço, mas optamos pelas de cerdas macias, para não danificar os materiais.
Desde que criei o perfil no Instagram, no ano passado, já visitei dezenas de cemitérios em cidades do Rio Grande do Sul, próximas a Pelotas. Em outubro do ano passado, ganhei de aniversário do Germano uma viagem para Buenos Aires, e, é claro, que passamos muito tempo no cemitério da Recoleta, registrando as raridades.
Apesar de não ser um trabalho oficial, ou apoiado por entidades públicas, ou privadas, nunca enfrentamos problemas ou fomos repreendidos por administradores e funcionários dos cemitérios. Em alguns locais, o grau de abandono é tão evidente, que nem encontramos gente trabalhando lá.
Só uma vez fomos questionados por um senhor, que devia estar visitando o túmulo de alguém, se a lápide que estávamos limpando era de algum parente nosso. Eu disse que não, que não conhecia o falecido. Ele fez uma cara estranha e começou a perguntar por que eu estaria limpando o túmulo de um desconhecido.
Aliás, essa é a pergunta que muitas pessoas fazem para mim nas redes sociais. Tem até uns haters que criticam o que eu faço, ficam me chamando de desocupada, que devíamos procurar algo melhor para fazer. Mas eu não ligo. Quem importa para mim é quem realmente se interessa pelo trabalho.
Fotos post mortem e símbolos
Além do resgate histórico, também faço um registro digital das fotografias post mortem colocadas nos túmulos, um tipo diferenciado de registro fotográfico das pessoas falecidas, muito comum entre os séculos 19 e 20. Nelas, os mortos aparecem 'posando' para o fotógrafo, como se ainda estivessem vivos. Até o momento, acho que já encontrei uns 20 trabalhos assim.
É interessante dizer que, em algumas lápides e esculturas, o nome dos artistas que as elaboraram também deixam sua assinatura. Muitos deles são italianos e eu sempre pesquiso um pouco da história deles também.
@tumultulos Já ouviu falar em fotografia post mortem? Se sim, já viu uma ao vivo? . A gente achou que nunca veria, mas encontramos várias aqui no RS! . #artetok #tumulo #asmrtok #seculoxix #lapides #tumba #limpezatumulo #gothictok #artenotiktok #graveyard #cemiterioantigo #cemiterionalavoura #artetumular #postmortem #postmortemphotography #póstuma ♬ Creepy and beautiful piano background music(918069) - TrickSTAR MUSIC
Outra curiosidade que gosto de registrar são os símbolos representados nos ornamentos funerários. Pouca gente se dá conta, mas há muito simbolismo em detalhes de esculturas e lápides.
Como um ornamento encontrado em uma sepultura no Cemitério das Elites, em Pelotas, que mostra uma flor circundada por uma serpente que morde a própria cauda. A flor é de alcachofra, uma planta capaz de se regenerar ciclicamente, e representa, como o mito da Fênix, o renascimento. O círculo formado pela serpente representa o ouroboros, um símbolo ligado ao eterno retorno, à espiral da evolução.
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Nada de sobrenatural
Apesar das muitas histórias sobre fantasmas, fenômenos e aparições em cemitérios, que as pessoas vivem contando, nunca me deparei com nada 'sobrenatural' em minhas visitas aos cemitérios.
Nunca acreditei nessas histórias, então talvez por isso nunca tenha visto nada, meu bloqueio é natural. Mas já me deparei com cadáveres e ossadas expostas, o que é muito pior. As condições de manutenção da maioria dos cemitérios em cidades pequenas são bem ruins mesmo. Uma vez visitamos um cemitério às margens da praia, que simplesmente está afundando.
Como o trabalho que realizo é voluntário, agora estou em busca de formas de monetizar meus vídeos e também espero contar com a ajuda de seguidores e interessados na arte tumular. Ainda tem muitos cemitérios que quero visitar em outras cidades e estados, com muitos tesouros a revelar.
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