O uso da estrutura do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) para divulgar um aplicativo bíblico aos servidores da pasta virou alvo de questionamentos pela Câmara dos Deputados.
Chamado Pão Diário, o aplicativo criado exclusivamente para o funcionalismo público armazena 365 mensagens “devocionais” – uma delas para cada dia do ano – e recebeu o reforço da rede interna do órgão para a propaganda institucional religiosa.
Segundo autoridades, a cooperação – já que o projeto é desenvolvido por uma Organização da Sociedade Civil (OSC) de mesmo nome do app – firmada em 2021 visa “fornecer assistência espiritual a profissionais da segurança pública”.
O questionamento às mensagens, que ferem a neutralidade do estado laico, é do gabinete do deputado Ivan Valente (PSol-SP), que protocolou um pedido via Lei de Acesso à Informação (LAI) exigindo explicações sobre o tema.
No aplicativo, as mensagens enviadas aos servidores indicam preferência ao cristianismo no material divulgado na intranet: “Quem é Jesus”, “Os Evangelhos” e um outro produto, o podcast “O Senhor é Meu Pastor” são exemplos de como é tratada a esfera religiosa pela Pão Diário.
A OSC já colaborou com o Exército, entregando 2 mil exemplares de um livro intitulado “Pão Diário – Edição Militar”, ao preço de R$ 11,2 mil.
Com a parceria junto ao MJSP, segundo a própria Pão Diário, mais de 50 mil servidores entraram em contato com a plataforma.
Em representação entregue à Procuradoria-Geral da República (PGR), Valente classifica a situação como “incompatível com o ordenamento pátrio (…), o que torna imperativa a instauração de procedimento para apuração de ilegalidade frente à violação da garantia constitucional da laicidade do Estado e à liberdade de consciência e crença”.
Oficialmente, o Ministério da Justiça garante que não houve investimento de dinheiro público para a realização da parceria. Contudo, em reunião realizada em 13 de abril de 2021, o desenvolvedor do projeto e presidente da OSC Pão Diário, Edilson Freitas da Silva, pontuou que o ministério poderia atuar em benefício da empresa como forma de compensação.
De acordo com a ata que o Metrópoles teve acesso, Edilson tratou de um curso de capacitação para capelães, realizado pela OSC. As palestras seriam divulgadas dentro do ministério, a nível institucional, pelas assessorias de comunicação das instituições dos profissionais de segurança pública federais e estaduais. Também estaria prevista a disponibilização de bolsas, pagas pela pasta, para capelães. O financiamento para pagamento das horas/aula dos professores dos cursos e a intermediação junto à Secretaria de Gestão de Ensino em Segurança Pública (Segen), órgão subordinado ao MJSP, também estariam no pacote.
“Solidificação de valores institucionais”
Um e-mail disparado no sistema interno do Ministério da Justiça apresenta o programa com teor religioso. De acordo com o texto, a pasta “disponibiliza o aplicativo (…) a todos os profissionais da área interessados em reflexões positivas, planos de leitura, podcasts (…), vídeos e notícias que acolhem e proporcionam momentos de paz para o usuário.”
O documento também pontua que o aplicativo está nas versões IOS (para Iphones) e sistema Android. Por meio do Pão Diário, ainda de acordo com o e-mail, é possível acessar a bíblia e ouvir “a rádio web 24 horas, a qual oferece música, estudos e mensagens abençoadas que confortam aqueles que acompanham o conteúdo gratuito”.
Em resposta ao deputado Ivan Valente, a pasta indicou que o texto em questão “é uma ação de divulgação de um dos produtos do Projeto de Assistência Espiritual para os Profissionais de Segurança Pública no âmbito do Pró-Vida”.
O ministério ainda atribuiu ao auxílio religioso um objetivo de “solidificação dos valores institucionais, humanização do operador de segurança pública, aumento da motivação”, além do “fortalecimento da união familiar” e “diminuição dos desvios de conduta”.
A ouvidoria da pasta indicou, ainda, que o projeto está “alicerçado em um Eixo de Valorização dos Profissionais de Segurança Pública, o qual compreende a promoção de ações de valorização e melhoria da qualidade de vida, por intermédio de programas, projetos e ações nas áreas de atenção biopsicossocial, de saúde e segurança do trabalho”.
A pasta argumentou, ainda, que o e-mail é exemplo de “atos discricionários da autoridade administrativa” – ou seja, receber ou não mensagens com este teor dependem unicamente da vontade do agente público.
O MJ também justificou que o projeto “transcende a religião, tendo a espiritualidade como ação voltado para o sentido da vida, integridade interior, equilíbrio emocional, otimização do potencial pessoal, ética, moralidade, probidade, responsabilidade e humanidade.”
Na resposta ao pedido via LAI, apesar de registrar em diversos momentos o cunho cristão do projeto, o MJSP pontua que o objetivo do projeto “não são os dogmas religiosos, mas a mobilização da fé em prol do alcance da valorização da cultura organizacional”.
Além do aplicativo disponibilizado aos profissionais de Segurança Pública, a Pão Diário imprimiu livros e folhetos, bem como ofereceu palestras e outros eventos junto aos agentes da área.
O acordo de cooperação técnica entre a Pão Diário e o MJSP foi firmado em 2021, sendo publicado no Diário Oficial da união em 3 de setembro daquele ano.
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