Foi pela televisão doada que Naiara, de 17 anos, começou a ter uma idéia da profissão que deseja escolher. Dentro da agora “residência fixa” em um antigo hotel no centro de São Paulo, ocupado há mais de 30 dias pela Frente de Luta por Moradia (FLM), ela planeja cursar direito inspirada em um juiz negro muito falado no noticiário. “Não consigo lembrar o nome dele. Mas vi o que ele faz pela TV e gostei. Tenho vontade de ser juíza”, justifica, forçando a mente para citar Joaquim Barbosa, presidente do Supremo Tribunal Federal e relator do mensalão.
A nova "casa" de Naiara é um dos 15 prédios ocupados pela FLM nos últimos meses. Dois dos imóveis – Lord e Cambridge – funcionaram como hotéis na cidade em décadas passadas. Hoje, eles são de posse da Cohab (Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo), que está tratando a questão judicialmente, segundo informou a Secretaria Municipal de Habitação.
Apesar do abandono, a estrutura encontrada desde o dia das respectivas ocupações provocou encantamento. A menina está no primeiro ano do Ensino Médio. Fora da sala de aula, ajuda a mãe a manter a suíte – chamada de lar – em ordem. O teto que já hospedou abastados virou uma espécie de condomínio para 247 pessoas. “É um sonho, nunca fiquei num lugar assim. O especial é que aqui é um luxo. Sempre sonhei em morar em uma casa que tivesse carpete", comenta a jovem.
A família de Naiara foi despejada da comunidade Alto Alegre, uma das mais de 1,5 mil favelas de São Paulo. Ao lado do irmão e da mãe, ela passou quase 20 dias residindo na calçada em frente à sede da Prefeitura de São Paulo, até ocuparem o Hotel Lord, no dia 29 de outubro. Além do piso, outro item de valor no novo endereço é a banheira, presente apenas em alguns quartos. O uso dela, porém, é coletivo. Cada dia da semana um grupo de moradores tem tal direito. “À tarde fica uma fila aqui na porta do quarto pra tomar banho”, explica Damiana, mãe da menina.
Instalados no imóvel há mais de um mês, as tarefas já estão bem divididas. Pelos corredores do hotel há diversos cartazes lembrando que todos devem tirar os lixos nos dias determinados, colaborar com a limpeza do prédio, e na compra ou busca de mantimentos. A cozinha é coletiva e a orientação é para não fazer refeições nos apartamentos. A medida tenta evitar a presença de insetos e ratos – antigos moradores do local.
“Tinha muito lixo aqui. Rato, barata, tava um perigo. Separamos assim pra manter a limpeza e segurança principalmente das crianças”, explica Osmar, um dos coordenadores da FLM. No hotel moram 157 crianças e 38 grávidas. Quem não trabalha deve ajudar nas tarefas do prédio. Damiana está em busca de um emprego pela região. Já pleiteou vagas nos comércios do centro. Enquanto espera ser chamada, cuida de filhos de outras moradoras que ainda não conseguiram vaga em creches ou escolas.
José Wellington Melo dos Santos, 23, está trabalhando como segurança de rua há uma semana. Conseguiu o emprego depois que passou a ter "residência fixa". Segundo Tamires, esposa do rapaz, ele tem chances de ser registrado. “A gente morava em um barraco em baixo do rodoanel. Não conseguíamos emprego nem escola pras crianças porque quem não tem casa não consegue nada”.
Para morar em uma das ocupações é preciso ser maior de 18 anos ou estar acompanhado de responsáveis. Stefany, 14, conhecida como “Gisele Bündchen do Lord”, perdeu os pais aos 10 anos. O apelido é auto-explicativo e a envaidece. A bela negra de 1,70 desfila pela entrada do hotel sem que seja necessário pedir. Atualmente, ela vive com a família da prima na ocupação. Deixou Itaquera para residir no centro. Quer voltar a estudar, mas a preocupação, neste momento, é ter uma roupa bonita para usar no Natal e uma boneca para chamar de “filha”.
Hotel Cambridge
No Cambridge a necessidade imediata é outra. As famílias que lá estão desde o dia 24 de novembro trabalham para ter o quarto arrumado até o final do ano. O salão que já serviu às famosas festas agora é um depósito de entulho. Durante o mutirão de limpeza, foram encontrados inúmeros documentos históricos do hotel. No material de arquivo, há fotos de celebridades como a apresentadora Hebe Camargo, Angélica e dos políticos Celso Russomanno, Paulo Maluf e Mario Covas. Os líderes da FLM pretendem entregar a papelada ao departamento do curso de história da Universidade de São Paulo (USP).
A estrutura do prédio ainda é precária. Na última sexta-feira (30), os eletricistas que ali estão vivendo conseguiram iluminar os 15 andares do prédio. Ainda falta água. Durante o final de semana, o empenho era pra arrancar o carpete dos quartos e corredores, na tentativa de melhorar a acomodação das 250 pessoas – os representantes da FLM acreditam que o prédio comporta até 700 moradores.
Alessandra de Araujo, 31, auxiliar de limpeza, planeja trazer os sete filhos, hospedados por ora em casas de amigos e parentes, na próxima semana. Sente saudades não apenas da bagunça das crianças, mas de tomar banho “de água corrente”. “Vontade de tomar um banho e ver a água cair, escorrer. A gente está se virando com caneca.”
Ela recebeu ordem de despejo do cômodo onde morava na Vila Missionária, e se juntou ao movimento. Do hotel, "ganhou" um móvel que fará de armário para as panelas, uma cama e quatro colchões – o que, segundo ela, já basta para acomodar a prole: Caroline (15), Kethellen (13), Gabriel (11), Asheleey (9), Kimberly (7), Sofia Vitoria (4), e Pyetro Cristofer. “Eles estão doidos pra vir. Aqui terão muito mais espaço para brincar.”
Alessandra divide não apenas o andar com a grávida Eline Brenda da Silva Matos, 29. Em comum, além da falta de um lar, o nome do filho. A gestante dará à luz Pietro Miguel em janeiro. A auxiliar de limpeza já é mãe do caçula Pyetro Cristofer, de cinco meses. Ambas também esperam criar as crianças com um pouco mais de tranquilidade. “Sinto mais segurança aqui. Estou feliz agora em ter um cantinho”, diz Brenda, que já tem até berço - também encontrado no hotel.
O risco de despejo, entretanto, é diário. “Enquanto a questão não se resolve a gente vai vivendo aqui”, afirma Sidney, futuro marido de Taciana Galvão. Eles se conheceram em 2011, durante uma ocupação, e agora estão morando juntos no Cambridge. "Casamos na ocupação", diz ela. Se tudo der certo, oficializam a união num dia supostamente cabalístico: 12 de dezembro de 2012. “A gente é sem-teto, mas é chique no negócio”, resume Simone Lourenço, integrante do movimento e também moradora do hotel da Avenida Nove de Julho.