Um ano após ter alta médica, Auristela Silva, de 23 anos, afirma que ter nascido sem língua não a impediu de viver nada. A jovem é um dos únicos três casos registrados na literatura médica, segundo o cirurgião maxilofacial que a acompanhou, Frederico Salles. A história vai ser apresentada em um simpósio na reitoria Universidade de Brasília, na tarde desta segunda-feira (14).
Em um vídeo feito para o evento, o odontólogo mostra a evolução da garota, contando de 1 a 10. Os dois se conheceram em 1995, quando a dona de casa Adriana Silva pediu ajuda para a filha. Na época, a criança engolia com dificuldade, falava mal e apresentava várias lesões no rosto por não conseguir reter a saliva na boca. A alimentação até então ocorria de forma improvisada.
“É uma anomalia incompatível com a vida, e por isso você não consegue ver os casos, eles morrem antes do diagnóstico. Usamos a língua para comer e falar”, diz Salles. “A mãe foi essencial. Como a menina não engolia o leite quando nasceu, ela comprou uma mamadeira de plástico que pudesse ordenhar, alargou o bico e, com a cabecinha da criança entre os joelhos e um pouco inclinada, jogava o leite direto na garganta dela.”
Para a sobrevivência de Auristela, foram realizadas várias cirurgias. A jovem diz não guardar lembranças ruins do tratamento. Viciada em maquiagem, ela afirma que adora brigadeiro e que passeia, estuda e namora normalmente, como qualquer garota. Atualmente ela faz um curso técnico de enfermagem na Escola Superior de Ciências da Saúde.
“A época triste foi quando eu era pequena. Meus colegas me chamavam de Maria babona e nas festas juninas meu par sempre sumia. Ninguém queria dançar comigo”, lembra. “Eu me sentia triste, me arrumava toda para dançar quadrilha e chegava na hora era isso: todas as meninas bonitinhas com o seu par e eu dançando com a professora.”
A jovem conta que se prepara para iniciar um estágio em um centro de saúde e afirma não se sentir inferior a ninguém. “Eu sinto que eu sou capaz. Eu nasci assim não foi à toa, é uma oportunidade de aprendizado e eu devo dar valor à vida mesmo com todas as dificuldades. O sol nasce para todos.”
A mãe afirma sentir muito orgulho de Auristela. Segundo a dona de casa, as dificuldades ajudaram toda a família a crescer. O essencial, diz, era sempre conversar com a menina e explicar que tudo que ela enfrentava é normal, já que todas as pessoas têm alguma dificuldade.
“O primeiro momento é aquele choque, né. Você está se preparando para ter um filho perfeito e de repente você se depara com um problema que no momento é a pior coisa que pode acontecer”, conta. “Mas, por outro lado, também é bom depois de tudo você ver que você fez o melhor que você pôde. E que deu certo.”
Entenda o caso
A aglossia congênita foi citada pela primeira vez em 1718, pelo médico e botânico francês Antoine de Jussieu. Até o final de 2012 foram registrados 12 casos da deficiência. Em nove deles, ela estava associada a outras limitações, como a ausência de dedos. De acordo com o cirurgião maxilofacial, Frederico Salles, há apenas três casos em que o paciente nasceu apenas sem a língua – os outros dois ocorreram nos Estados Unidos.
Para a sobrevivência desses pacientes, são necessárias cirurgias que alarguem a mandíbula deles, além de terapias para fortalecer a musculatura da boca. “A criatividade e o amor das mães, que trazem uma força sobrenatural para buscar as soluções para as necessidades das crianças, também fazem total diferença”, explica.
O odontólogo explica que Auristela conseguiu aprender a falar porque os músculos da parte debaixo da boca dela são três vezes mais fortes que o normal e tocam os dentes. A jovem fez acompanhamento com psicólogo, fonoaudiólogo, nutricionista, dentista e dois cirurgiões durante 16 anos.