Com tanta gente de olho em uma vaga na administração pública, organizar um concurso virou um negócio lucrativo. Sem uma lei que regulamente o setor — e, portanto, sem perspectivas de punição —, as denúncias de fraude nos processos seletivos para o funcionalismo se proliferaram nos últimos anos.
Os números do Ministério Público Federal (MPF) ilustram a dimensão do problema. A instituição investiga, atualmente, 1.789 denúncias relacionadas a certames em todo o país. Isso sem colocar na conta os casos que passam pelo crivo da Polícia Federal, que se diz não autorizada a revelar dados sobre o assunto.
Goiás é o Estado que reúne mais queixas de irregularidades: são 268 registros em tramitação na primeira instância (veja quadro). Os abusos são diversos. Um dos casos mais polêmicos é o da Fundaso, empresa fantasma inventada para organizar a seleção do também inexistente Instituto Científico Educacional de Assistência aos Municípios (Iceam). As duas entidades chegaram a usar o brasão da República e a publicar edital no Diário Oficial da União. O MPF e a PF as investigam civil e criminalmente.
No último domingo, a aplicação dos testes da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em todo o país deixou milhares de candidatos insatisfeitos. Reclamações, como possíveis falhas na violação do lacre de segurança das provas e a presença de aparelhos eletrônicos nas salas dos exames, colocaram em xeque a credibilidade da empresa organizadora — o Cetro Concursos. Caso as irregularidades sejam confirmadas, e o certame, cancelado, mais de 125 mil pessoas serão prejudicadas.
A reportagem procurou o Cetro, que não atendeu as ligações. A Anvisa está avaliando a suspensão ou não do concurso. A agência admitiu que foram constatados outros problemas no Rio de Janeiro e em Alagoas e adiantou que pretende adotar "as medidas necessárias para preservar a lisura do concurso e o direito de todos os participantes". Além do Ministério Público, a Polícia Federal investiga o caso.
Apesar de os candidatos tentarem conter os abusos com denúncias à PF e ao MPF, muito pouco é, de fato, resolvido. No geral, o que os inscritos veem é falta de transparência e de retorno por parte das entidades que investigam as reclamações. As denúncias, geralmente, acabam sendo arquivadas ao longo dos anos.
É o caso do último concurso para o Senado Federal, cujas provas foram aplicadas em março do ano passado. Entre as queixas, houve desde a tentativa de inscrição de um dos membros da banca à presença de celulares dentro das salas. Das 28 irregularidades apuradas pelo MPF no Distrito Federal, no entanto, 26 foram arquivadas. As outras duas viraram ações civis públicas: uma foi arquivada e a outra ainda está em curso.
Faltam regras - Para o professor Ernani Pimentel, ex-presidente da Associação Nacional de Proteção e Apoio aos Concursos (Anpac), os abusos acontecem, porque falta uma lei que regulamente o setor. "Da forma como é hoje, as bancas se tornaram ditadoras, têm direito de tudo e nenhum dever." Ele cita, por exemplo, a falta de obrigatoriedade, por parte da organizadora, de responder os recursos feitos pelos candidatos na tentativa de mudar a resposta de uma questão ou de anulá-la. "Basta a banca indeferir o recurso."
Pimentel defende que casos como o da Anvisa sejam anulados. Segundo ele, as irregularidades mais comuns entre as organizadoras são manipulação do resultado, entrada de aparelhos eletrônicos, erros no edital, acréscimo de matérias obrigatórias em cima da hora e permissão para ida ao banheiro sem um fiscal.
Com tantas brechas para que as empresas façam o que bem querem, quem sai no prejuízo são os concurseiros. Camila Martins, 25 anos, fez a seleção para a Anvisa no último fim de semana. Ela conta que os cadernos de provas chegaram à sala onde estava com 25 minutos de atraso. "Além disso, tinha gente com o celular em cima da mesa de prova e apenas uma pessoa para fiscalizar."
Para Bruna Lima, 19 anos, o sentimento é de frustração. "Gastamos e abrimos mão de muita coisa na busca pela carreira pública", ressaltou. No ano passado, ela participou das provas para o Tribunal Superior do Trabalho (TST), no qual, segundo conta, tiveram várias irregularidades. "Os candidatos entraram nas salas sem que o fiscal pedisse para desligar os aparelhos celulares. Sem contar que não havia sinalização de horário: o candidato tinha de perguntar", recordou.
Regulamentação - Para Rudi Cassel, advogado especialista em direito do servidor e dos concursos públicos, uma das grandes falhas que permitem tantas irregularidades é a possibilidade de dispensa de licitação na hora de contratar a banca, como ocorreu no concurso da Anvisa.
O Cetro foi escolhido sob a justificativa de ter apresentado a menor cotação para o valor das inscrições. "A licitação funciona como um filtro para evitar que uma empresa sem estrutura qualificada tome a frente da organização de uma seleção", afirmou.
Para ele, uma regulamentação poderia mitigar a situação. Mas o Projeto de Lei do Senado nº 74/2010, que propõe regras para a execução de seleções públicas, está parado há quase três anos na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Casa. Previsto para ser apreciado na pauta de amanhã, o texto sugere, entre outras coisas, a punição nos âmbitos civil, criminal e administrativo às bancas que burlarem a isonomia dos certames e a anulação dos exames com irregularidades.
do Correio Braziliense