Ao subir à tribuna da Câmara dos Deputados no dia 8 de março com uma peruca e discursar contra mulheres trans, o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) expôs uma estratégia recorrente entre parlamentares bolsonaristas: atacar a comunidade LGBTQIAP+ como forma de mobilizar a militância conservadora, principalmente nas redes sociais. Além das falas, deputados e vereadores também vêm recorrendo à apresentação de projetos de lei sem embasamento científico que reproduzem preconceitos e intolerância. Levantamento feito pelo GLOBO identificou 68 propostas em tramitação no Congresso, estados e municípios que miram direitos e trazem proibições associadas a temas da comunidade.
Os textos, que circulam em Brasília, 17 assembleias estaduais e seis câmaras municipais, têm pouca chance de aprovação e abrem margem para contestação judicial, seja porque são inconstitucionais ou fogem das atribuições legislativas — há também afirmações falsas nas justificativas. Mais da metade foi apresentada por integrantes do PL, partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, e do Republicanos, ligado à Igreja Universal.
O tema mais abordado, com 16 menções, é a tentativa de proibição de banheiros unissex ou transgênero em espaços públicos e comerciais, que também apareceu no discurso de Nikolas. A premissa parte de situações hipotéticas de abuso, sem estatísticas e casos concretos, e miram pessoas trans. Na Assembleia Legislativa da Bahia, por exemplo, o deputado Pastor Tom (PL) recorreu ao argumento para justificar uma proposta de lei. “Quem garante que pessoas de má fé, ou simplesmente confusas com a própria identidade, não possam se aproveitar de alguns ‘direitos’ como forma de violar a privacidade de meninas e mulheres, se passando por ‘transgêneros’?”, escreveu.
Na Câmara de Curitiba, uma proposta do vereador Ezequias Barros (PMB) busca proibir a instalação e uso comum de banheiros públicos por pessoas de sexos diferentes nas escolas municipais. O vereador argumenta que “tem se tornado algo comum, com reclamações frequentes de pais e professores, a tentativa de instituir princípios da ideologia de gênero nas escolas”. A prefeitura de Curitiba, porém, afirma que não adota esse modelo de banheiro nos colégios.
Aliado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o deputado federal Pastor Sargento Isidório (Avante-BA) trata em uma proposta mulheres trans como “homens fantasiados de mulher”. A mesma expressão é usada em outro projeto de Isidório, que se autonomeia “ex-gay”, que estabelece o “direito” de policiais mulheres se absterem de “realizar abordagem em homens fantasiados de mulher”.
Outro tema que se tornou uma frente de atuação é a proibição do uso de hormônios e bloqueadores para transição de gênero em menores de idade. O assunto é regulamentado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), que estabelece que o processo hormonal cruzado, em que há uso de testosterona, estrogênio e antiandrógeno, só poderá ser iniciado a partir dos 16 anos e que os procedimentos cirúrgicos de adequação só são permitidos aos 18 anos.
Os bloqueadores, por sua vez, são usados para paralisar a puberdade e são reversíveis. O CFM determina que são de caráter experimental e só podem ser realizados em hospitais universitários e de referência para o SUS. O objetivo, com o uso do medicamento, é garantir tempo para que a transição ocorra posteriormente. Parte dos projetos confunde essas etapas.
Na Assembleia de São Paulo, o deputado estadual Tenente Coimbra (PL-SP) propôs a probição do uso de bloqueadores hormonais em menores de 16 anos com a justificativa de que têm sido usados a partir dos quatro anos de idade e cita como exemplo o Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual, do Hospital das Clínicas da USP, que segue as recomendações do CFM. Os bloqueadores, porém, não são usados nessa faixa etária, que recebe apenas acompanhamento psicológico. Em uma postagem para divulgar o projeto em seus perfis nas redes sociais, Coimbra voltou a repetir a alegação falsa e ressaltou que há uma “antecipação da sexualização das nossas crianças”.
Advogado e especialista em crime de homofobia, Thiago Jordace explica que o bloqueio hormonal e todas as etapas da transição de gênero não são de competência das casas legislativas, mas de órgãos ligados à comunidade médica. Ele ressalta ainda que projetos que tentam proibir a união homoafetiva, a adoção e outros direitos adquiridos, são inconstitucionais por violarem o princípio de vedação ao retrocesso.
— Mesmo que uma lei como essa seja aprovada, não teria valor algum. Os deputados protocolam os projetos com o simples propósito de agradar seus eleitores extremistas.
Em 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) equiparou a LGBTfobia aos crimes raciais, aplicando as mesmas penas. Por não terem um alvo específico, os posicionamentos de parlamentares, na avaliação de Jordace, em geral não podem ser enquadrados no crime de injúria, mas podem ser punidos pelas respectivas Casas por quebra de decoro.
Mais recentemente, a participação de atletas trans em eventos esportivos também se tornou um alvo. As propostas costumam alegar que há uma vantagem competitiva injusta “comprovada pela medicina”, entendimento oposto ao do Comitê Olímpico Internacional (COI), que não vê evidências suficientes para a afirmação.
Primeira deputada trans eleita para a Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), Dani Balbi (PCdoB) avalia que os parlamentares usam a transfobia como parte de seu compromisso político:
— O meu mandato é para fazer prosperar os direitos das pessoas LGBTQIAP+ e a luta pela cidadania. A resposta é o extremo oposto, com projetos transfóbicos, mesmo sem embasamento legal.
Para mobilizar e imobilizar
Nas assembleias e câmaras municipais, também tramitam textos que afrontam princípios constitucionais já balizados por decisões do STF. São os casos de tentativas de proibições da linguagem neutra e debates sobre gênero no âmbito escolar. O entendimento é que são atribuições federais normas gerais sobre diretrizes e bases da educação e que tratem de currículos, conteúdos programáticos, metodologia de ensino ou modo de exercício da atividade docente.
— As propostas anti-LGBT+ não têm embasamento científico e ganham legitimidade com o formato de projeto de lei. Buscam criar a noção de que há grupos ameaçando a estabilidade e existem parlamentares lutando contra isso. As plataformas digitais funcionam como uma câmara de eco — aponta o advogado e antropólogo Lucas Bulgarelli, diretor do Instituto Matizes, organização de pesquisa LGBTI+.
O caso de Nikolas Ferreira exemplifica o potencial de engajamento nas redes. Após seu discurso no plenário, o deputado ganhou 317 mil seguidores no Instagram entre 8 e 15 de março, de acordo com dados do CrowdTangle, plataforma de monitoramento da Meta. Desde que sua página na plataforma foi criada, em 2019, só houve crescimento superior durante as eleições passadas.
— A transfobia e a LGBTfobia se tornaram verdadeiros capitais políticos. Esses parlamentares se elegeram com esse discurso e o utilizam, de forma proposital, como uma ferramenta de imobilização dos deputados LGBTQIAP+, que poderiam trabalhar várias demandas, mas precisam lidar com a violência política — conclui a doutora em Sociologia Jurídica Evorah Cardoso, integrante da organização #VoteLGBT.
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