por Jany D’Xangô*
No último dia 21 de março, celebramos o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé e o Dia Internacional pela eliminação da discriminação racial. Porém, apesar disso, os povos de terreiro não têm muito o que comemorar no Brasil. Em 2024, o país registrou 3.853 violações à liberdade religiosa, de acordo com a Ouvidoria Nacional do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC). Esse número representa um aumento de mais de 80% em relação a 2023.
Sabemos, por experiência, que a maioria desses casos ocorreu em templos de matriz africana. Infelizmente, a violência e a intolerância praticadas contra os povos de terreiro são muito mais comuns do que imaginamos no país.
Precisamos entender que o “povo de terreiro” é muito diverso, pois no Brasil existem diversas religiões de matriz africana, que surgiram da mistura de culturas africanas, indígenas e europeias. As religiões de matriz africana mais comuns são o Candomblé, a Umbanda, o Tambor de Mina, o Batuque, o Terecô, o Jarê, o Xangô, a Quimbanda, o Omolocô, a Umbandaime, a Umbandomblé etc. Porém, mesmo assim, uma grande parcela da população brasileira, leiga ou até mesmo mal-intencionada, se refere pejorativamente aos povos de terreiro como “macumbeiros”, achando se tratar de uma única religião.
Precisamos compreender a realidade dos povos de terreiro, que historicamente são perseguidos, violentados e marginalizados por causa do exercício de sua fé. Hoje, no Brasil, falta representatividade desses povos nos espaços de discussão e política. Falta união e coesão desses líderes religiosos em prol da causa, falta legislação específica (nacional e regional) para a garantia de direitos, existe preconceito “velado” por parte dos políticos, que não acolhem as pautas dos povos de terreiro por medo de perder votos dos conservadores. A polícia e órgãos fiscalizadores não possuem preparo para atender e acompanhar casos de violência e perseguição aos templos. Existe morosidade e pessoalidade dentro dos órgãos públicos e empresas privadas quando os templos precisam acessar serviços, até mesmo os mais simples (exemplo: cartórios, prefeituras, corpo de bombeiros, carros de aplicativo, mercados, Receita Federal, bancos, lojas, etc.).
Eu poderia ficar horas listando as dificuldades que enfrentei como Mãe de Santo de Umbanda quando precisei resolver questões legais referentes ao templo que dirijo em Várzea Grande-MT. Vejo claramente a má vontade velada nas pessoas quando estão prestando serviços ao terreiro. Não posso generalizar e dizer que todas as pessoas se comportam assim, mas, via de regra, existe muita hostilidade com os povos de terreiro.
Atualmente, um dos maiores problemas que enfrentamos é a falta de liberdade de culto e manifestação religiosa em espaços públicos. É praticamente impossível realizar um ato religioso em praças, rios, cachoeiras, cemitérios, parques urbanos e ruas, sem recebermos algum tipo de assédio ou repressão. Lembrando que esses espaços são vistos pelos povos de terreiro como pontos de força para a manifestação de sua fé e também são usados livremente pelas outras religiões (consideradas tradicionais), sem nenhum tipo de repressão.
Em partes, a falta de expressividade dos povos de terreiro nas decisões políticas e em espaços públicos também se deve à falta de união, coesão e respeito entre os pais e mães de santo. Muitos sacerdotes (não todos!) Preferem ficar disputando egoicamente qual terreiro é melhor, mais forte e tem mais “clientela” do que buscar união, coesão e fortalecimento dos povos de terreiro junto à população e às autoridades. Falta humildade em muitos dirigentes espirituais, que só conseguem enxergar nos seus pares um concorrente. Não buscam o apoio dos seus pares para o crescimento e fortalecimento da religião e, principalmente, para fazer com que os povos de terreiro sejam respeitados e deixem de ser atacados gratuitamente.
Senti isso na própria pele quando abri o templo de umbanda que dirijo. Em vez de acolhimento, recebi ataques e descrédito por parte dos meus próprios pares. Quero lembrar aos meus nobres colegas que o sacerdócio é missão. Não se vira Pai ou Mãe de Santo; se nasce Pai ou Mãe de Santo! É uma missão espiritual que a pessoa planeja antes do seu próprio nascimento e vai “lutar” para cumpri-la. Somente a espiritualidade pode outorgar esse direito e ninguém pode retirá-lo.
Ser um líder religioso não é uma tarefa simples, mas é muito gratificante, pois somos instrumentos de auxílio, cura, conforto espiritual e também socorro material para uma multidão de necessitados. Não podemos e não devemos ganhar nada em troca por isso, nem mesmo facilidades. Temos que viver para a religião e não da religião. Precisamos nos unir e lutar pelos nossos direitos, que já são esfacelados por aqueles que não gostam da nossa religião. As lideranças de terreiro precisam parar de brigar entre si e ir “brigar” pelos seus direitos no lugar certo. É necessário definir o alvo correto.
Precisamos aprender a separar o joio do trigo e os lobos dos cordeiros.
Todos os terreiros e sacerdotes são assim?
Obviamente que não!
Assim como em outras religiões, existe todo tipo de líder: bom e honesto, ruim ou aproveitador. Não é sobre religião, é sobre pessoas. Precisamos ter clareza de todas essas situações e fazer um ordenamento das coisas: o que é certo é certo e o que é errado é errado. Que cada um assuma suas responsabilidades: pessoas comuns, autoridades, políticos, líderes religiosos, federações e associações que representam os povos de terreiro, etc.
Todos devem respeitar o espaço e o direito de crença das pessoas e lutar por uma cultura de paz. Não precisamos atacar as outras pessoas e religiões porque elas não pensam como nós. Devemos respeitar a diversidade e a liberdade de opiniões, crenças e culturas. Afinal de contas, o Brasil é um Estado laico e não deve tender para nenhum movimento religioso em específico, apenas respeitar e garantir direitos de todos.
Precisamos acordar!
*Jany D’Xangô, mãe de Santo de Umbanda
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