O Hospital das Clínicas da USP (Universidade de São Paulo) possui um centro de acompanhamento integrado de crianças e adolescentes que apresentam sinais de disforia de gênero -angústia relacionada ao sentimento de que o sexo de nascimento não corresponde à identidade.
A manifestação de disforia nem sempre significa a transexualidade do indivíduo e pode ser algo pontual.
Por isso, a equipe do Amtigos (Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual), composta de psiquiatras, psicólogos, pediatras e endocrinologistas, faz uma análise criteriosa dos casos.
Os assistidos são submetidos a um processo pormenorizado que pode culminar, se assim for a avaliação de paciente, médico e família, em injeção hormonal, permitida a partir dos 16 anos, e em cirurgia de afirmação sexual, a partir dos 18 anos.
Todos os procedimentos seguem diretrizes do CFM (Conselho Federal de Medicina).
Na última quarta-feira (1º), um vereador de São Paulo apresentou o pedido de abertura de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para investigar o acompanhamento de transição de gênero de crianças e adolescentes feito pelo Amtigos.
A proposta de Rubinho Nunes (União Brasil) foi motivada por uma reportagem do portal G1 publicada no Dia da Visibilidade Trans, no domingo (29).
Segundo o texto, atualmente cem crianças com idade entre 4 a 12 anos fazem o tratamento de transição de gênero no local, assim como 180 jovens de 13 a 17 anos.
Também há 160 famílias na lista de espera, apurou a reportagem.
"Realizar tratamento hormonal ou procedimento preparatório para mudança de sexo em crianças é um crime. Enquanto esses pais se valem do HC da USP para satisfazer a própria esquizofrenia ideológica e submeter os filhos a experimentos, pessoas com doenças graves ficam sem atendimento adequado", afirmou Nunes.
O plenário da Câmara Municipal ainda vai decidir se autoriza a investigação -é necessária a aprovação da maioria simples dos 55 vereadores.
Alexandre Saadeh, coordenador do Amtigos, diz que o ambulatório tem como propósito amenizar o sofrimento de crianças e jovens com seus corpos, proporcionando assim uma melhor qualidade de vida.
"Nós não fazemos experimentos com ninguém, não estamos falando de ratos de laboratório, são seres humanos que merecem um tratamento digno e, principalmente, muito respeito. Ninguém é obrigado a tomar hormônios e fazer cirurgias. Isso, se acontecer, é fruto de um criterioso acompanhamento pautado em conceitos médicos, não ideológicos", diz.
Segundo Saadeh, a finalidade do centro é mitigar o sofrimento de todos os envolvidos.
"Somos defensores do diagnóstico não como patologizante, mas como protetor. Queremos blindar essas pessoas da dor de viver uma realidade que não é delas, além de proteger suas famílias da dor causada pelo desconhecimento."
O Amtigos foi fundado em 2010. Inicialmente recebia adultos, mas desde 2015 só crianças e adolescentes são atendidos -há pacientes adultos que começaram a ser acompanhados na menoridade.
Na época, não havia legislação específica sobre o tema no Brasil. Provocado, o Conselho Federal de Medicina, com suporte de especialistas, formulou uma resolução que estabeleceu que casos de disforias seriam abordados em centros multidisciplinares de pesquisa.
Com isso, os resultados podem ajudar na universalização das terapias.
São poucos os locais habilitados no país. Além do HC, há um ambulatório em Porto Alegre e outro em Campinas, no interior de São Paulo.
O Amtigos costuma atender pessoas de 4 a 13 anos. Os maiores de 13 são encaminhados para a rede de saúde da Prefeitura de São Paulo, parceira do projeto em procedimentos avançados de redesignação sexual, como o uso de hormônios.
A supressão da puberdade é o tratamento inicial para pessoas transgênero. Ela impede o desenvolvimento de características biológicas adultas, antes de utilizar hormônios de afirmação de gênero.
Guilherme Polanczyk, professor titular de psiquiatria de infância e adolescência no Hospital das Clínicas da USP, ressalta que a supressão é também uma forma de ganhar tempo. "Ninguém vai chegar com hormônios e um bisturi.
Leva tempo e muita conversa para realmente entendermos aquelas pessoas, e elas próprias se entenderem. É paralisada a puberdade para que todos pensem. Nós acompanhamos todos de perto, pais e filhos", declara Polanczyk
Assim como os jovens, familiares são analisados por profissionais. Dúvidas e angústias também atingem muito os responsáveis, diz o professor.
Uma das parentes assistidas é Aline, 40. O filho dela, de 14 anos, iniciou seu processo de redesignação sexual há dois anos. A família é de Diadema, na Grande São Paulo.
O menino já havia iniciado seu processo pubertório, mas ainda assim foi selecionado.
"Meu filho passou a ser acompanhado, assim como eu, e isso tem sido de extrema importância." A família recebe suporte psicológico do centro e participa de reuniões mensais com outros integrantes.
Laura, 46, passa por situação similar. Seu filho, de 13 anos, começou a manifestar desconforto com seu corpo há dois anos.
Natural de Vitória, no Espírito Santo, a família agiu prontamente para que o filho, que havia acabado de menstruar, tivesse o corpo adequado à sua realidade.
O adolescente foi levado ao Amtigos. Seu processo de maturação feminina foi cessado com bloqueadores e iniciou-se seu acompanhamento psicológico, assim como o de sua família.
"Hoje, meu filho parece outra pessoa. De tímido, ficou expansivo. De acanhado, começou a participar de várias atividades. Ele vive quem é plenamente", complementa Laura.
Karen de Marca, diretora da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia, que o trabalho do ambulatório é um marco da saúde pública brasileira.
"Somos médicos e fazemos acompanhamento técnico, mas a finalidade de tudo é uma vida digna para a população trans."
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