Onovo ministro do Esporte, deputado George Hilton, não é economista nem francês. Não se chama Thomas Piketty nem vendeu 1,5 milhão de exemplares de “O capital do século XXI”. Em comum, eles têm apenas a idade, 43 anos.
Piketty acaba de rejeitar o título de cavaleiro da Légion d’Honneur por considerar que não é papel de um governo — no caso o do socialista François Hollande — decidir quem é honrado.
No caso do nosso pastor da Igreja Universal ungido a ministro, a questão não é de honra, e sim de política. Já por isso, e considerando-se o esdrúxulo currículo do baiano de Alagoinhas, nada o faria declinar o convite. Problema da presidente Dilma Rousseff, responsável pela sua nomeação ao cargo. A vaia que marcou a posse do novo ministro pode ter sido constrangida e constrangedora, mas a biografia do deputado já deve ter sido marcada por desconfortos maiores.
Amargo é o que está por vir em decorrência de sua nomeação: mais quatro anos de oportunidades perdidas num país inebriado por grandes eventos, mas que, em mais de 500 anos, ainda não conseguiu ter uma política pública para o esporte.
Em entrevista concedida a Luana Nunes Leal, de “O Estado de S.Paulo”, o prefeito do Rio, Eduardo Paes, sustenta que a pasta pode ser tocada por um bom administrador, não é essencial que seja um profundo conhecedor. “Se o sujeito for bom gestor, vai muito bem. O que a gente quer é mais atuação do governo federal na Olimpíada”, disse o prefeito da Rio 2016.
Engano. O que a gente quer é muito mais do que uma impecável festa de esportes olímpicos que deixará saudades a toda uma geração. O que a gente quer e precisa é de um Plano Nacional de Esporte da dimensão do Brasil, capaz de garimpar o inexplorado potencial esportivo nacional. Jogos Olímpicos são um desperdício de esforço e de recursos quando não acompanhados de uma política pública para o esporte. O inverso talvez fosse mais sadio: os Jogos como coroação da melhoria na formação esportiva da nação.
George Hilton não deve ter notado uma notícia da esfera esportiva quase simultânea à sua posse: a entrada em vigor, a partir de 1º de janeiro, do novo Código Mundial Antidoping. Ele contém avanços inegáveis, como penalidade dobrada (quatro anos de suspensão) para o atleta pego no doping, o que, na prática, o elimina de um ciclo olímpico completo.
Há também a recomendação para que casos de doping possam ser submetidos a uma investigação policial, não apenas à análise da Justiça Esportiva. Caberia a cada país decidir por onde quer cercear os infratores. A Alemanha já declarou que pensa em introduzir sanções penais para atletas dopados. A França, por enquanto, prefere aplicar somente sanções esportivas.
Está aí um primeiro tema com o qual poderá se ocupar o novo ministro.
O novo código também permitirá que controles fora de competição sejam feitos entre 21h e 6 da manhã — dependendo da legislação de cada país, é claro. Na França, perquisições noturnas só são autorizadas em casos graves como terrorismo.
A delação premiada, responsável pela implosão final do ciclista heptacampeão do Tour de France, Lance Armstrong, também será incentivada E médicos, agentes, auxiliares, treinadores, dirigentes, amigos ou familiares de atletas coniventes com doping passarão a ser investigados pelas agências antidoping — o que até então era proibido.
O causador do maior estrago à indústria do doping, à imagem da Rússia como colosso esportivo e à Federação Internacional de Atletismo (IAAF), contudo, foi um documentário transmitido em dezembro pela emissora alemã ZDF/ARD. Ali todos estão juntos e misturados como cúmplices de corrupção e desmandos.
O documentário intitulado “Doping confidencial: como a Rússia fabrica seus vencedores” (em tradução livre) é devastador. Foi filmado durante o ano de 2014 pelo repórter investigativo alemão Hans-Joaquim “Hajo” Seppelt e está disponível no YouTube. Deveria ser programa educacional obrigatório no Ministério do Esporte, na Rio 2016, no COB e, sobretudo, em todas as claudicantes federações esportivas brasileiras.
Não é de hoje que Seppelt investiga, denuncia e comprova a problemática do doping no esporte. Desta vez o alemão foca no que ele chama de doping sistêmico em todo o aparato estatal russo, com a conivência de autoridades da Federação Internacional de Atletismo. É coisa grande. Seppelt rende homenagem a Vitaly Stepanov, um ex-funcionário da agência russa antidoping, a quem deve a primeira denúncia. “Ele é uma espécie de Edward Snowden do mundo do esporte”, compara o repórter.
A maioria dos denunciantes (anônimos ou os que mostram a cara) tem histórias ambíguas de conivência com o sistema. São todos da elite do esporte, falam em tom manso, não se exaltam nem se revoltam. A narrativa da investigação é germanicamente convencional e cronológica, sem qualquer audácia criativa.
Os episódios levantados por Seppelt superam a imaginação. A título de teaser há o caso de Lyliya Shobukhova, durante anos a melhor maratonista do mundo, mas cujos índices sanguíneos sempre pareceram suspeitos. Jamais fora suspensa. Meio ano antes dos Jogos de 2012 foi chamada pela Confederação Russa de Atletismo e alertada pelo chefe de missão de que talvez ela teria problemas com os controles em Londres. Para garantir sua participação sem problemas a atleta pagou primeiro 150 mil euros aos dirigentes e pouco depois outros 300 mil euros ao técnico Alexei Melnikov. Em Londres teve de abandonar a prova no km 22,4. Quando finalmente foi suspensa, tanto a IAAF como os russos ficaram nervosos e lhe foram devolvidos 450 mil euros.
Há empresas de fachada com endereços em Cingapura, há pesquisadores antidoping injetando atletas pessoalmente, há técnicos russos com conexões capazes de fazer sumir um teste, e muito muito mais.
Neste mês de janeiro a WADA (agência mundial antidoping) se põe em marcha e vai investigar por conta própria as denúncias feitas pelo jornalista alemão. O ano começa agitado. É bom nosso George Hilton começar a se mexer.
Dorrit Harazim é jornalista