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Opinião Sexta-feira, 06 de Janeiro de 2017, 14:17 - A | A

Sexta-feira, 06 de Janeiro de 2017, 14h:17 - A | A

opinião

O massacre de Foucault

                                                                                                                                    por Gabriel Leal *

O cidadão honesto, pagador de impostos e anônimo, acompanha com indiferença às dezenas de mortes nos presídios de Manaus. E até lhe causa aborrecimento o excesso de preocupação com as “vítimas” do massacre por um lado, e dura revolta mesmo, ao descobrir que suas famílias poderão ser indenizadas, por outro.

Mas, o cidadão comum não tem o protagonismo da razão e de seu sofá já puído antes do fim do crediário, exausto da lida, não forja a opinião pública como os intelectuais que assiste na TV, dos colunistas de jornais e sabichões de fala empoada, para os quais, o acontecido em Manaus exige uma profunda reflexão e reforma sobre nosso sistema criminal e penitenciário.

Todavia, para esse cidadão da massa, qualquer um de nós se pleno de suas faculdades mentais sabe diferenciar o certo do errado, evitando assim o presídio. Ele tem certeza que, mesmo uma criança não terá dificuldade em descobrir que deve dividir seu bolo, ainda que negue e chore, até ser educada com rigor fraterno. Esse cidadão desclassificado pelo establishment, tem a intuição de que nossa diferença dos animais não é somente a capacidade de pensar e saber que um dia morrerá. Mas, a consciência moral e, por meio dela, jamais achar injusto retribuir um mal pela sua exata medida a quem o pratica. Tudo isso é tão óbvio e clarividente para ele, e exatamente em tempos como o nosso, esse cidadão esmagado pela ideologia precisa ser defendido, pois sua defesa é a defesa mesma da racionalidade.

Em 1975, um filósofo de esquerda chamado Michel Foucault publicou na França um livro chamado “Vigiar e Punir”, que chegou ao Brasil somente em 1987, através de uma editora de católicos franciscanos vejam só, e hoje, conta para lá de 40 edições. Um tremendo sucesso editorial em todo mundo ocidental. Um tremendo sucesso de crítica entre intelectuais, formadores de opinião, artistas e livres-pensadores. Um livro que, sem exageros, revolucionou o modo de pensar sobre o sistema criminal e penitenciário.

Em linhas gerais, Foucault traz à tona uma grande revelação: Desde o século XVIII até o início do XX, o sistema político-criminal transformara sua forma de punir beneficiando o controle e a conduta ao invés do castigo físico preponderante e espetacular até então; produzindo o criminoso e suas patologias por meio de técnicas ao invés de censurá-lo em seu caráter hediondo e doente em si mesmo. Toda uma engenharia político-penal transformara as polícias em “tecnologias de punir” ao invés de reconhecê-las como instituições de defesa social.

De modo geral, Foucault faz uma crítica profunda dos métodos e práticas que o sistema carcerário utilizava para encerrar presos num registro múltiplo de cerceamentos, sem, contudo, castigá-los na carne estritamente. Tal cerceamento múltiplo e microfísico, com efeito, ultrapassava os corpos, outrora castigados pelo suplício público, agora registrados por horários, trabalhos, uniformes listrados, muros, cercas eletrificadas e manuais de conduta ultra rígidos, clivagens de toda sorte --- o que era ainda muito mais severo, conforme o francês.

Foucault, dessa forma, implodia a maneira como os criminalistas do século XIX-XX disciplinavam a “alma” dos detentos, destruindo-os da pior forma possível. Aliou, toda essa rotina de disciplinas e controles ao regime curricular das escolas e das fábricas, e por fim, associou a reforma penal da época com o advento das sociedades de mercado sedentas por pessoas dóceis ao consumo, e, dessa feita, matou a charada que envolvia a transição de “táticas de sujeitamento”: do castigo físico ao castigo da disciplina e do trabalho forçado.

Em suma, Foucault destruiu a forma de compreensão das rígidas prisões do séc. XIX, pois descortinou que a "arte de punir" na forca e no patíbulo não fora extinta, apenas aprimorada (com mais crueldade).

Ok. Foucault com suas teorias emancipatórias fez escola nos anos 70 e 80. Viajou o mundo. Só ao Brasil veio cinco vezes — há quem diga que viera outras vezes, mas anônimo, em busca dos prazeres de Dionísio (más línguas, pudera). Com sua morte, vítima da AIDS, Foucault vira um símbolo POP, guru, um fetiche para acadêmicos e, a partir daí, com sua proliferação nas universidades e delas, para as organizações públicas, ninguém compreendeu mais o sistema penitenciário da mesma maneira, sobretudo, depois de “Vigiar e Punir”.

Com esse livro na cabeça, disciplinar corpos por meio do trabalho e do rigor metódico do estudo em grades, ou supliciar então, nem pensar! Depois da grande onda que Foucault fez surgir no oceano da racionalidade simples do cidadão comum, para o qual o certo e o errado são claros como o sol, a ordem agora era ridicularizar a ordem das coisas, e o castigo justo, o trabalho duro ao condenado, a série infinita de horários e rotinas, passou a ser a anátema combatida. Daí, a terapia pelo ócio e o respeito a liberdade do homem, que precede ao preso, devia ser a regra pétrea. A condenação, doravante, passa a ser vergonha do Estado e não do criminoso.

Ocorre, assim, um deslocamento de responsabilidades: do preso sobre seus atos e culpa para o Estado como carrasco e devedor de ressocialização. Os germens de qualquer responsabilização pública e social por mortes unilateralmente cogitadas e executadas dentro de presídios está justamente aí, com o massacre do bom senso pela caneta de um intelectual. Embuste, que o pacato cidadão cheira de longe e desdenha pelo noticiário.

Menos de quarenta anos depois de "Vigiar e Punir" chegar por estas terras, seu autor não está mais aqui para ver presídios comandados por presos --- exatamente como os melhores sonhos de Foucault não alcançariam; condenados amiúdes falando em celulares 24h por dia; tomando decisões extramuros no comando de suas ações criminosas e, para coroar, dias atrás, em Manaus (no mesmo Brasil que Foucault esteve) promovendo um rega-bofe de fim de ano que terminou em dezenas de cabeças cortadas — o ápice da liberdade sadomasoquista diria Foucault, que, aliás, via tais práticas como “aventuras éticas”.

Sim, se a reforma que o autor de “Vigiar e Punir” desmascarou ao mundo levou ao prejuízo da racionalidade que afronta o cidadão, está na hora de repor a lucidez dos que padecem seus efeitos, ou seja, nós, e dizermos, no mínimo: Foucault, mon ami, você estava muito errado.

Gabriel Leal, Major PM. Doutor em educação, PUC/SP. Mestre em educação, UFMT. Bacharel e especialista em Segurança Pública pela Academia de Polícia Militar Costa Verde.

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