A miséria ou a carência de ordem financeira e material é situação evitada pelo silogismo nosso de cada dia. Tão elementar quanto a ojeriza de Tom e Vinicius pelo sol ou a cadência perfeita da canção que homenageia uma bela mulher, é o direito de qualquer um a uma vida menos dificultosa. Há que se ter a bonança como meta, uma vez que a busca por algo melhor, toda entremeada de desafios, é o que nos evolui. É a dificílima dangerosíssima tarefa de conhecer-se a si mesmo. Certo? Errado.
Em tempos de campanha política – mas não só – a massa de candidatos se vangloria por ter tido uma infância pobre, como se o panorama de vacas magras os fizesse melhores que seus oponentes abastados. Talvez até sejam, mas não será só a pobreza ou a riqueza a definir o mais apto. Ao fazer isso, o ex-miserável desproporciona o problema pelo qual passou. Tem-se aí um sofisma, um raciocínio lógico que conduz a uma conclusão falsa: “Foi tão positivo viver mal na infância que agora isso me credencia ao cargo público”. Certo? Erro outra vez.
A mentalidade enganosa pode banalizar o problema que é dos mais sérios enfrentados por países como o Brasil de hoje ou de antes. Sendo pobre ou emergente, de economia polpuda ou rala, as perguntas sem respostas não mudaram tanto, e no solo tupiniquim o dinheiro teima em prosperar, mas distribuí-lo que é bom, muito pouco. O candidato valoriza a sua pobreza porque, como político, dará muito trabalho a ele resolver questões como essa. “Você é pobre? Não se preocupe, eu também fui. Há mérito nisso”. Lavam-se as mãos, uma incumbência a menos, dinheiro e corrupção adicionais.
O curioso é que quem já foi pobre, não quer mais ser. Quem é, quer deixar de ser. A miséria não é uma contingência, uma condição circunstancial, referendada pela instância divina. O pobre existe porque há um sistema político e econômico que encarcera as classes, o jogo de cartas marcadas é mantido. E não me venha com a história de que o capitalismo tem como pressuposto a liberdade. Pode até ser menos engessado que as demais proposições econômicas, mas o aprisionamento mais sutil é louvado por quem submete.
A síndrome do coitadinho ou a folclorização da miséria é mais uma das ilusões da política e da vida. Por estar mais vistoso, eu não sou menos digno do que o tiozinho estirado na esquina, com roupas desgastadas e desesperançoso. O Faustão não é menos honrado do que eu só por ter a fortuna que tem. Mensura-se o caráter por meio de outros parâmetros, mas quem, em sã consciência, se arrisca a dizer-se inocente? Fora essa discussão mais longa e impalpável, estejamos empenhados em anular, amenizar, denunciar a pobreza, ao invés de reverenciá-la.
Quando as dificuldades são enormes, não são poucos a enfrentar situações adversas. Não que se deva fechar os olhos a isso, mas a apologia às avessas, a ponto de cultuar o impropério que é a miséria, é demasiado descartável. Que os infortúnios se voltem ao autoconhecimento, à introspecção, e não virem megafones a vastas multidões. Alguém de ouvido atento pode achar interessante ser assim ou fazer-se de vítima. Sim, ela, a vítima, que se dá ao desfrute de não arcar com nada.
Thiago Cury é graduado em jornalismo e mestre em comunicação, ambos pela Universidade de Marília (SP). Desde 2009 é professor do curso de jornalismo da Universidade do Estado de Mato Grosso e há oito anos escreve para um semanário da cidade de Getulina (SP). Saiba mais em seu blog http://semcensor.blogspot.com.br/