* Cecília Ramos
“Não é o avião do candidato a presidente da República Eduardo Campos”, respondia eu, constantemente, a cada dezena de ligação que recebíamos no comitê do PSB na Vila Mariana, naquela manhã de quarta-feira chuvosa, 13 de agosto de 2014, em São Paulo. O flat que meu marido, Carlos Percol, havia alugado para mim ficava a duas quadras do meu trabalho. Cheguei comendo uma maça no comitê e me deparo com o acidente na televisão. Um helicóptero havia caído em Santos.
Ufa! Um helicóptero… Eles só andavam de jatinho, afinal. Um Cessna Citation. Viajei quatro vezes nesse bicho. Percol brincava e segurava minha mão, quando a aeronave balançava demais. Dizia: “Relaxe. Este é o meio de transporte mais seguro do mundo”. A cobertura avançava na TV e meu olho bateu na legenda estampada na tela. Trocaram a palavra helicóptero por jatinho. Pronto. Acendeu a luz vermelha. “Meu Deus, responde! O seu celular do Recife está chamando”, eu escrevia para o Tchinho, como eu chamava Carlos Augusto Ramos Leal Filho, apelidado desde os tempos do colégio no Recife como Percol, por conta de uma marca de calça. Mas era o “Guto”, para a mãe, Dona Alzira, para as irmãs, Ana Braga, Carla e Sandra Leal, e para os familiares e amigos de infância.
“Se você estiver recebendo essas mensagens, por favor me ligue. Caiu um jatinho em Santos!”, insistia eu, em whatsapps desesperados que nunca foram lidos. E que eu reli pela primeira vez oito meses após o acidente para escrever, também pela primeira vez, minhas memórias sobre aquele 13.
Colegas jornalistas do Brasil inteiro ligavam para o comitê, para o meu celular, acionavam as minhas redes sociais. Muitos não me conheciam mas já conheciam ele, que há 8 anos trabalhava com Eduardo. Àquela altura, queriam confirmações. Amigos, padrinhos de casamento, nossos familiares também tentavam contato… Mas eu não dava conta da demanda. E só pedia: “Rezem. Rezem para que não seja ele… Ele não me responde”. Mas lá vinha a verdade em caixa alta na minha cara. “Caiu um jatinho, partindo de Santos Dumont, no Rio de Janeiro”, retrucava um jornalista ao telefone. Ou “Só falta uma letra para confirmar que era o Cessna do Campos”. Como jornalista, eu só pedia aos colegas que fossem responsáveis e aguardassem confirmação.
Meu marido nunca deixou um whatsapp sem resposta. E era eficiente no feedback. Desligamos o celular pela última vez às 9h21, horário da decolagem. O jatinho caiu às 10h03. Calculem o que acontece na vida de vocês num intervalo de 43 minutos.
Por mais que a verdade estivesse estampada ali na TV, estavam naquele avião Eduardo Campos e Carlos Percol. Dois dos homens que eu mais considerava imbatíveis. Nesse caso, especificamente, pela saúde, pelo vigor. Porque eram sinônimo de vida. Esses caras não adoeciam. “Eu sou corpo fechado, Tchinha!”. Só me lembrava dessa frase do meu marido, que, em quase cinco anos de relacionamento, eu nunca vi pegar sequer uma gripe. Então esperei que estivessem entre as vítimas socorridas e levadas para a Santa Casa de Misericórdia.
Sou otimista incurável, graças a Deus. Mas não brigo com os fatos. Rodrigo Molina, sobrinho e afilhado de Renata e Eduardo Campos, atendeu o celular no auge do noticiário devastador. No corredor do comitê, eu gritei e fui ao banheiro chorar. Molina + Percol = Eduardo. Essa era a conta. Os três viajavam sempre juntos. Mas não naquele 13. Exclusivamente naquele dia Eduardo pediu para o sobrinho acompanhar a tia, Renata, e o bebê Miguel, na viagem de volta ao Recife.
Eu estava sem som e imagem com aquilo tudo. Entrei no carro com Renato Thiebaut (da equipe de Eduardo desde quando fora ministro de Lula) para irmos a Santos. No rádio, a notícia de que o governador de São Paulo Geraldo Alckmin estava a caminho de Santos, pois não havia mais jeito, foi um soco no meu estômago. Aí eu gritei “Nãaaaaaao!” E não sei como não quebrei o punho ao socar o vidro do carro. Voltamos para o comitê. E lá, entrando sozinha, em uma das salas entulhadas de gente incrédula, muda, com lágrimas que não paravam de cair…. Eu li e ouvi a única notícia que faltava para cair a ficha: “Os sete passageiros do Cessna Citation morreram”. Fui ao chão e desabei. Choro mudo. “Você era amiga de alguém do avião!?, me perguntou um colega do trabalho, tentando me levantar. Só consegui pronunciar: “Esposa”. Eu só estava trabalhando há 10 dias na campanha. Muitos não me conheciam – menos ainda como “esposa do Percol”.
Àquela altura todos os meus amigos de São Paulo já estavam reunidos no nosso flat. Me abraçavam e choravam, dizendo: “Me diga que não é verdade!”. Era a notícia que eu mais queria desmentir na minha vida, meus amigos! Eu mandei uma única mensagem naquele momento, às 13h39: ao bispo que nos casou. “Dom Ximenes, meu marido estava no avião com Eduardo. Hoje eu estou acabada, mas minha fé não se abala”.
E não se abalou. Naquele dia, voltei para o Recife com uma amiga, madrinha do nosso casamento. Dopada. Mas consciente o tempo inteiro. Madrugada do “day after”, Aeroporto do Recife, eu mal ficava de pé por muito tempo: mais de 40 amigos e familiares me aguardavam. Vi logo Seu Eliezer e Dona Ritinha, meus pais. Incrédulos.
Amor de muito. É o que eu recebo de lá pra cá. Uma corrente de amor e solidariedade de gente amiga, de gente anônima. Nesse período, as coisas vão se encaixando. Mas tem que ter aquela dose extra de força de vontade. O clichê que Deus dá o frio conforme o cobertor eu ouvia muito da minha mãe. E vivencio todo dia. As coisas são como têm que ser. Ok, encare, Cecília. E não adianta buscar explicações, senão você congela no tempo. Paralisa.
Eu não imaginaria, nem no meu pior pesadelo, casar e – quatro meses depois – estar na Base Aérea no Recife esperando o caixão do meu marido chegar em um dos três aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) que transportaram as sete vítimas. Era tanta escolta que nem nós, familiares, podíamos chegar muito perto, naquela noite de um frio estranho, de um chuvisco melancólico. Portas abertas, estavam lá quatro caixões. Vazios, é verdade. Percol “veio” junto com Eduardo Campos, o fotógrafo e meu amigo pessoal, Alexandre Severo, e do cinegrafista Marcelo Lyra. A junção das palavras “restos mortais” nunca me soou tão estranha. Mas era só o que tínhamos. Não me aguentei e corri para aeronave. Tentaram impedir, como a outros familiares. Questões de segurança. “Ninguém toca nela! Ela é a esposa!”, gritava repetidamente Rodrigo Molina, entrando comigo no avião. Me debrucei sobre aquela caixa vazia de madeira. Sozinha. Os filhos de Eduardo Campos seguravam o caixão do pai até o carro do Corpo de Bombeiros. O de Percol seguiu depois e eu lembro de cada passo meu tocando aquilo. Vi fotos deste nosso momento tão insuportável nos jornais e em blogs. Aliás, amigos “cliparam” quase tudo. É a minha história, afinal. E será para sempre.
Eu também não imaginaria receber a aliança de Percol – intacta, meu Deus!– num envelope enviado por Alckmin, por intermédio do então governador de Pernambuco, João Lyra – que, aliás, foi meu padrinho de casamento, assim como Eduardo Campos. Eu não imaginaria estar num carro do Corpo de Bombeiros, com Renata Campos, o filho, José, e Rodrigo Molina, em comitiva até a sede do Governo de Pernambuco, o Palácio do Campo das Princesas, onde simbolicamente foram velados Percol, Eduardo e meu amigo Severo. Dalí seguiu-se uma maratona.
Uma câmera numa grua filmava tudo da janela do carro do Bombeiro no trajeto até o velório. Aliás, filmavam e fotografavam tudo em todo canto. E de jornalista que perguntava eu virei a entrevistada que respondia. Lembro José Campos impressionado com aquela multidão nas ruas para se despedir do pai dele. E Renata repetia: “Olhe, meu filho! Quanto amor!”. E da janela a gente via uma multidão gritando, chorando, agradecendo, mandando beijos em direção ao carro em que estávamos. Apontava para a camisa da escola pública, para a cadeira de rodas, levantavam cartazes de programas do Governo Eduardo. E minha emoção se misturava. A da jornalista que escrevia sobre esse governo, que depois virara amiga da família Campos, com a dor da esposa recém casada.
Tenho lembranças “partidas” do velório. Foi tudo “de muito”. Populares, autoridades, policiais, familiares e amigos que não paravam de chegar. Eram tantas coroas de flores… E nelas eu lia PERCOL em caixa alta. “Não aceito”, eu mentalizava. Hoje minha frase é: “Eles não existem mais. Como é que pode?”. Mas nada mudou: eu não aceito. Nunca aceitarei. Mas você coloca isso numa caixa secreta dentro do peito e vai viver.
No velório no Palácio, nós nos misturávamos aos parentes de Eduardo e de Severo e à multidão que queria dar adeus a um dos governadores mais populares que Pernambuco já teve. As demais vítimas do acidente foram veladas em outros locais, a pedido de suas famílias. Ali eu já não conseguia mais chorar. Acho que eu já estava perto de completar 30 horas “no ar’, sem dormir. Já amanhecendo e me levaram para tirar um cochilo numa cadeira do segundo andar do Palácio. É o mesmo lugarzinho onde hoje me sento com outros colegas de trabalho para acompanhar o nosso chefe, o governador de Pernambuco, nos eventos em que ele é o anfitrião. Me acordaram quando a presidente Dilma Rousseff e o ex-presidente Lula estavam a caminho do velório. Me levaram até eles. Queriam dar um abraço. Lembro das palavras de Dilma, que pegava com as duas mãos no meu rosto dizendo: “Minha filha, que brutalidade”. E viu a aliança de Percol no meu peito. Tocou e voltou a me abraçar. Esta era a palavra que eu sentia: brutalidade.
No cemitério, o mesmo filme inacreditável. Eu queria poder parar de doer naquela hora. E impedir a dor de Dona Alzira, a mãe de Percol. A pessoa que eu tanto o vi cuidar, se preocupar, dar a atenção que ele podia. E naquele momento eu só agradeci a ela, por ter ajudado a fazer dele um homem tão bom, tão lindo, um marido tão amoroso e parceiro nos quase 5 anos que moramos juntos. Ele também foi um colecionador de amigos. Deus do céu! Eram muitos. Alguns vestiam camisa com a foto e o nome dele.
Eu quis ver tudo. A cobertura do velório, do enterro, a repercussão. Meus olhos ardiam, cansaço, choro, sono, tudo junto. Na cobertura da TV, eu quis ver inclusive as simulações do momento da queda. Ninguém me respondeu, nem no Cenipa, em Brasília, se eles sofreram. “Foi tudo muito rápido”, é o que repetem.
Nessa loucura toda, teve um descanso: a noite do aniversário de Renata Campos, cinco dias após o desastre. Na casa dela no Recife, esticamos até de madrugada, numa contação de história sem fim, aplacando a saudade. Foi muito riso. A gente chorou de rir, como se diz. Obra divina. Percol não podia me ver chorar. Era uma briga se eu chorasse. Vi parte do filme “12 Anos de Escravidão”, na volta da nossa lua de mel, “escondida”, enquanto ele dormia no avião. Acordou e eu estava chorando. Levei um pequeno esporro. E Renata me contava que Eduardo era o mesmo com ela. E isso a fez “segurar a onda”.
Um momento à parte foi quando voltou de São Paulo meu “marido Galego” – como a gente brincava. Ganhou o apelido desde que eu casei em 5 abril de 2014 e Percol se mudou para São Paulo logo após a lua de mel para dividir apartamento com ele e com o ex-deputado Pedro Valadares (assessor de Eduardo e também vítima do acidente). Eu só cheguei três meses depois. E fui morar em um bairro vizinho a Moema. O “Galego” foi nossos olhos e nossos ouvidos em Santos, lá naqueles escombros. “Você é minha caixa prata”, dizia eu, para o cara que mais conviveu com Percol nos últimos tempos. Vi as conversas dele com Percol em dois celulares. Feito esposa ciumenta. Em uma delas, meu marido perguntava se ia ter vaga no avião que os levaria ao Rio, naquele dia do Jornal Nacional. “Talvez Cecília consiga ir”. Pois é. Eu não fui.
No auge da dor eu quis ficar na nossa casa no Recife, onde se amontoavam presentes de casamento que sequer chegaram a ser abertos. Para onde também correram os muitos amigos nossos e familiares. Senti vontade de escrever, como eu fazia para me comunicar com o Tchinho. Afinal, já convivíamos com a distância próximo de um “muito bem, obrigado”. Percol sempre brincava, dizendo que estava ficando famoso e que queria que eu escrevesse sobre ele. “O que você vai escrever sobre mim no insta (o Instagram)?”, perguntava ele a cada degrau que ele merecidamente subia. E eu escrevia. Está tudo lá. “Eu adoro que você escreve sobre mim, Tchinha”. No nosso último encontro, uma segunda-feira em São Paulo, dia 11 de agosto, ele me disse para eu fazer a “clipagem” do que saia dele. A gente riu tanto. E ele me esperou entrar no elevador do comitê para, do carro, ele dar aquele tchau e beijo de Miss Brasil.
Duas semanas após o acidente, eu voltei a morar em São Paulo. Comecei a ir na terapia. Me reintegrei à campanha de Marina Silva, que fez questão de me chamar quando retornei ao trabalho. “Minha querida, vai dar tudo certo”. E está dando, sim. Graças a Deus.
E fui ficando, ficando, ficando em São Paulo… Fiz o segundo turno com Aécio Neves. Nova mudança de bairro, de colegas de trabalho e o primeiro grande desafio: dormir a primeira noite sozinha no meu quarto de hotel. Era um domingo. Ligo a TV e…? Aparece a chamada do Fantástico com a imagem de Percol com Eduardo Campos saindo do Cessna Citation. Meus pais e alguns amigos me ligaram. “Gente, eu preciso ver. E chorei, chorei e chorei. Aquele choro de molhar o travesseiro, de deixar os olhos inchados e vermelhos. E adormeci.
Voltei de vez ao Recife para as festas de fim de ano – após quase alugar apartamento em São Paulo e emendar a campanha em um emprego novo por lá. Mas foi uma viagem ao Recife sem volta. Fui convidada a ser secretária Executiva de Imprensa do governador Paulo Câmara, que havia sido escolhido por Eduardo para a sucessão. “Sim”, eu disse. Em janeiro deste ano, assumi, na verdade, uma tarefa que foi brilhantemente desempenhada pelo meu marido.
Vejam o que é o destino – ou chamem como preferir. Chegamos a cursar algumas cadeiras na mesma faculdade de Jornalismo, mas temos uma vaga lembrança disso. Não tínhamos contato naquela época. Depois, já formados, nos reencontramos. Passamos a conviver em 2007. Ele era o assessor do governador Eduardo Campos e eu era a repórter setorista do governo em um jornal de Pernambuco. A paquera só começou em 2010 e por mensagens quando eu estava de férias, fora de Pernambuco. Passaram-se alguns meses até que o beijo se concretizasse no final daquele ano de 2010. Nosso trabalho pesava na balança. Era um conflito. Resumidamente: como repórter, eu atacava; ele, como assessor, defendia.
Mas estávamos diante de um amor inevitável, de uma admiração mútua. E que bom que a vontade de estar junto nos dominou. Tive que abandonar o barco para Percol poder navegar. Me inviabilizei como repórter de política. Pedi para sair. Lembro que do jornal fui para a casa dele. Tive que parar no trajeto pois não conseguia dirigir de tanto que eu chorava. Estava abrindo mão do que eu amava fazer e do que eu conquistei profissionalmente. Fui para a editoria de Economia e depois para a coluna social. Passei a ficar em “suspeição”. Afinal, eu não era mais “a repórter”. Era “a mulher de Percol”. E lá se iam dez anos de profissão… Ele virou secretário de Imprensa do Recife. E eu faria tudo outra vez. Foram quase cinco anos juntos, sendo quatro sob o mesmo teto.
Eduardo Campos e Percol se desincompatibilizaram do governo e da Prefeitura do Recife, respectivamente, na véspera do nosso casamento. No prazo limite, 4 de abril de 2014. E na noite daquele dia jantamos na casa do “presidenciável”, antes de seguirmos para o local da nossa festa, Aldeia, vizinha do Recife. “Essa lua de mel de vocês vai durar quantas horas? Porque tem muito serviço par tu, Percol”, brincava Eduardo.
E Londres já havia sido cortada do roteiro. Fomos para Paris e Amsterdã. Mais uma viagem divertidíssima, de muito amor e cumplicidade. Ele queria ser pai e a lua de mel era um caminho. Mas eu recuei. Pensamos juntos e o convenci, depois, que eu seria uma grávida sozinha, sem o pai do bebê, durante a gestação. E isso ele não admitia. Acabou concordando já que estaria com Eduardo Campos rodando o Brasil.
Retornamos numa quinta-feira de Paris e Percol foi morar com Eduardo já no domingo. Do aeroporto eu escrevi sobre ele no Instagram, como ele amava. Percol, agoniado como sempre: “Escreve logo antes que decole. Você está tão fraquinha de marido mesmo…”. E fazia o sinal de coração com as mãos. Um gaiato, um chantagista amoroso. Ele ia dando as costas apontando para o celular e fazendo esse coração. E eu escrevi no “Insta”, naquele abril de 2014, uma postagem com foto de Eduardo abraçando Percol no nosso casamento: “Ele vai morar em um avião por alguns meses. Meu coração fica do tamanho de um grão de chia (…) Vai, Tchinho. Vai que você merece cada pedacinho do que você conquistou”. Não foi um pressentimento. Foi o óbvio para uma campanha presidencial com muitas viagens no roteiro.
“Está vendo essa festa toda aqui? Mas quem vai levar Percol sou eu. Ele vai rodar o Brasil comigo”, disse Eduardo Campos a Dom Ximenes, que nos casou “na tarde linda que não quer se pôr” de 5 de abril de 2014. Foi o casamento mais belo e cheio de vida que nossos sonhos pudessem alcançar. Lembro que no day after, já no hotel, a gente ria alto. Olhava para algumas fotos e vídeos que os amigos compartilharam no whatsapp e não acreditávamos. Estávamos em estado de encantamento. A celebração religiosa deixou boquiaberto o mais descrente dos nossos convidados. E a festa ao ar livre teve o nosso astral despojado – com amigos que vieram de várias partes nos abraçar -, e o mais tímido se esbaldou no salão até a madrugada. Já no final da festa, eu chorava descabelada, com o nariz vermelho, abraçada aos amigos dizendo: “Ele vai embora. Ele vai me deixar só”. Afinal, após a lua de mel ele entraria numa campanha presidencial.
Como noivo, Percol foi bem dizer uma noiva. Tinha um check list maior que o meu. Mesmo em viagens a trabalho, ligava quase todo fim de tarde para saber se cumpri minha parte na missão “?#?diaD”. Já morávamos juntos há quase quatro anos quando decidimos fazer a festa de casamento. E quatro meses depois àquela festa toda, ele foi levado. Como eu disse naquele agosto-desgosto de 2014: Eu não faço questão de perdê-lo para Eduardo Campos. Percol estava no melhor momento da sua vida, fazendo o que amava e acreditava. Nos falamos logo após Eduardo dizer que não desistiria do Brasil, no Jornal Nacional. Meu marido estava eufórico. Pude confirmar a felicidade no rosto dele, nas filmagens e fotos que a TV Globo nos enviou, após o acidente, com os bastidores daquele dia no JN. Assistimos eu, Renata e Eduarda Campos, na casa delas no Recife, em março passado.
“Eu tô muito feliz, Tchinha. Tu não bota fé não. O chefe botou para foder! Foi bem demais! É uma águia!”, repetia no celular comigo. Percol no Rio. Eu em São Paulo. Naquela madrugada do 12 para o 13, eu chorava muito ao telefone. De cansaço, de saudade, de tensão. Fiz uma selfie porque ele queria ver como eu estava. Odiava que eu chorasse. Percol queria ser pai. Mas a gente não conseguia se ver. “Tchinha, não fique assim. Odeio ver você chorar. A gente vai aguentar. Em novembro completamos nossa lua de mel. Já organizou nossa viagem para o México? Falta pouco”. E eu fui dormir. E eles jantaram juntos no hotel com Renata, Miguel e o staf da campanha. Cerca de oito horas depois do nosso último “Boa noite. Te amo”, um jatinho havia caído.
E a vida segue desde então. Talvez felicidade é justamente poder seguir em frente. Cada vez que a gente se despedaça. Ser forte e não retroceder tornou-se minha única opção nesta travessia. Digo que este ano de 2015 eu reservei para me “mimar”, me fazer bem, resetar a vida. E tiro do meu caminho tudo o que me trave o peito e me impeça o riso. Eu sempre disse, antes mesmo do acidente, que ser feliz é uma decisão de vida. Um estilo de vida. Eu não dou intimidade a problema, como repetia muito Percol, que já aprendera a frase com o chefe. Eu brinco que meu jeito stand up comedy tem me salvado. Ironicamente, inclusive. Porque sempre quis ser tímida. Acho um charme. “Tu és gaiata, és?”, brincava Percol comigo, outro palhaço por natureza.
Hoje, eu só quero paz. Eu compro paz, como eu costumo brincar. Não vou negociar meu sossego. O meu sentimento é de reconstruir a vida e fechar os olhos e tapar os ouvidos para os julgadores de plantão, os “vigias” do luto. Sim, existe isso. Tem gente a postos para medir meu tempo de sorrir, entristecer, de amanhecer e de entardecer. Mas nem a mais espiritual das criaturas humanas pode saber na pele o que se passa comigo ou com qualquer outra vítima disso tudo. A menos que tenha vivido perda igual.
É insuportável a dor de querer o que não existe. Então tem que ser uma decisão enxergar sua vida para frente. Foi o que eu fiz, mas meu retrovisor está aqui do lado, involuntariamente. Ainda não finalizei nosso vídeo de casamento. Chegamos a trocar mensagens na semana anterior ao acidente. Conversamos sobre a edição e até isso deixamos pronto – por escrito. Tivemos três fotógrafos. Ele não conseguiu ver. Eu só tinha visto 1/3 e mandava para ele “foto da foto”, que eu fotografava a tela. Reabri o baú das fotos delicadas para esta reportagem. Vi com minha melhor amiga, madrinha de casamento e vizinha, Natália. Nós choramos. Nos últimos tempos, Percol ligava para alguns amigos pedindo para que “cuidassem de Cecília”. “Não quero ela solta por aí”. Foi assim com Natália, no Recife.
Tenho falado com as outras viúvas desse acidente e alguns parentes. Bom, esse termo “viú…” é que não me “entra”. É tipo uma roupa apertada que não me cabe nos meus 36 anos. Tenho escrito no meu Instagram, onde recebo mensagens do Brasil e de fora. A maioria que escreve ou que fala pessoalmente comigo me deseja uma vida nova, agradece as palavras que eu escrevo e me diz que sou “exemplo de superação”. Mas nada me deixa mais (re)confortada do que ler e ouvir que ajudo alguém a ter forças, a superar algo ou que encorajo a aproveitar a vida. Ah… E muita gente já me deseja um novo amor. Já discute meu futuro amoroso. Que bom. Eu tenho futuro.
Tive a sorte de ser amada por um companheiro, um parceiro, um admirador desses de frases de poesia. E é por isso que escrevo e falo tanto aos casais: primeiro, tem que ter admiração mútua, no pacote junto com o amor, o respeito, o desejo. Depois, sejam cúmplices, não durmam brigados, não guardem o que sentem. Gastem. Usufruam. Coisa mais linda é demonstrar o que se sente. Façam valer o fato de que estar junto é uma escolha. Ninguém é obrigado. Estar junto é um encontro. Um encaixe harmônico.
Não virei guru espiritual, não sou a última vítima do mundo e muito menos virei expert em alguma coisa. Mas atravessei uma dor inacreditável. E olhar para trás e ver que a gente viveu tudo que tinha para viver e que não guardou nada para depois desperta em mim uma vontade constante de compartilhar, de dizer a vocês: vão viver! Não economizem.
Ainda sou reconhecida na rua, aqui na minha cidade, o Recife. No começo eu me assustei, depois eu aceitei como carinho. Curiosidade também, por que não? E como minhas contas nas redes sociais sempre foram abertas e eu sempre amei escrever, acho que é inevitável. As pessoas – grande parte desconhecidas – me abraçam, quando me reconhecem, e elogiam minha postura. Parei de tentar explicar que eu não tenho postura “x” ou “y”. Eu apenas estou “indo”, seguindo, do jeito que eu sempre fui, vivendo o que eu sinto e do meu jeito comediante até na hora do aperto. Eu não economizo sentimento, não parcelo alegria e sempre fui de juntar gente. Também obedeço a minha vontade. Não luto contra ela. Eu dizia a Percol que a vontade move o mundo. E move, se somada ao seu agir.
E minha primeira vontade este ano foi mudar tudo: de casa, de trabalho, de vista. Novos ares. Deixei para trás nosso apartamento todo decorado e fui para o lado oposto da cidade, o bairro do Pina, pertinho da praia e no mesmo edifício da minha melhor amiga. Mantive os mesmos amigos e ganhei dezenas de outros. Essa coisa de juntar gente perto de mim só me faz bem. E disso aí eu sou incurável.
Fiquei mais sensível e com mais pressa de ser feliz todo dia. Aí insisto para que a gente não deixe escapar o que pode viver hoje, o agora. Eu não sei para onde vai o “depois”. Eu não sei para onde vão as coisas que a gente não vive, não diz. Quase oito meses depois do acidente tive coragem de abrir nossos chats no celular dele do Recife e no de São Paulo. A última mensagem do meu marido para mim foi: “Resolvi sua vida”. Ele se referia a questões burocráticas de trabalho que eu precisava concluir e não conseguia. “Resolvi sua vida. Não precisa você se preocupar. Vou tentar te ver de todo jeito hoje, antes de irmos para Brasília. O chefe quer viajar depois da gravação”. Como eu recebia a agenda antes, por trabalhar no jornalismo da campanha, não tinha como me iludir. Após o evento em Santos, Eduardo gravaria para a propaganda eleitoral. E, à noite, seguiria para Brasília.
Não sei o por vir. Bate, de vez em quando, aquele medo de sofrer. Como se eu já tivesse dado minha cota de sofrimento nesta vida. Aí vem meu bom humor dizer ao meu querido destino: livrai-me de todo o mal, já que eu não tenho garantia de nada. E ninguém venha adjetivar a saudade de “boa” ou “bonita”. Eu sinto uma saudade estúpida do que nunca terei de volta. Do que me foi arrancado. Domingo de Páscoa faríamos um ano de casados. Brinquei com o Tchinho na minha oração lá na pedra do Arpoador (RJ), para onde me refugiei, e disse: “Você me deixou só. Agora resolva minha vida…”. E chorei sorrindo.
Atravessar o que eu atravesso criou em mim uma película protetora invisível aos olhos. Mas que eu sinto. Vejo os sinais. Como se ele estivesse cuidando de mim. No dia que escrevo este texto para a Glamour, encontro o “marido Galego” por acaso em um shopping. Fazia muitos dias que não nos encontrávamos. E ele me pergunta, entre outras coisas, se eu já estou o “traindo”. E sorrindo, emenda: “Percol quer ver você feliz. Você sabe disso. Vá ser feliz!”. Eu sei. E sorrimos juntos. Um anjo da guarda só meu e uma torcida imensa – de conhecidos e anônimos – estão “operando” juntos para isso. Para que eu possa florir de novo. Eu já vejo o comecinho da primavera e sou muito grata por isso”.
*Cecília Ramos é jornalista e estava casada há quatros meses com o assessor de Eduardo Campos, morto em um acidente aéreo em agosto de 2014.