por Grhegory P P M Maia*
O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu liminar ao mandado de segurança impetrado pelos senadores Alessandro Vieira e Jorge Kajuru e determinou – no último dia 8 – que o Senado Federal adotasse as providências necessárias para a instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) a fim de apurar eventuais omissões do governo federal no enfrentamento à pandemia pela Covid-19, no Brasil. Na liminar, o ministro destaca que, de acordo com precedentes do STF, a instauração de CPIs deve ser vinculada, unicamente, ao preenchimento de três requisitos: o requerimento de um terço dos integrantes das casas legislativas; a indicação de fato determinado a ser apurado, e a definição de prazo certo para sua duração.
Uma vez atendidas as exigências constitucionais, impõe-se a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, não cabendo, portanto, possibilidade de ser obstada pela vontade da maioria parlamentar ou dos órgãos diretivos das casas legislativas. Ainda para argumentar sua decisão, Barroso enfatiza que: “Trata-se de garantia que decorre da cláusula do Estado democrático de Direito e que viabiliza às minorias parlamentares o exercício da oposição democrática. Tanto é assim que o quórum é de 1/3 dos membros da casa legislativa, e não de maioria dos pares. Por esse motivo, a sua efetividade não pode estar condicionada à vontade parlamentar predominante.” Ao final, o ministro justificou a concessão da liminar com urgência em razão do agravamento da crise sanitária no país, que está “em seu pior momento, batendo lamentáveis recordes de mortes diárias e de casos de infecção”.
Sobre a ação do ministro Luís Roberto Barroso, o presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco, em coletiva à imprensa, manifestou-se dizendo que “considera uma decisão que invoca precedentes do STF, concebidos a partir de casos concretos que não aconteceram em um momento excepcional como vive o Brasil atual. O Brasil hoje está em um momento de absoluta excepcionalidade, talvez a maior da história, e isso foi desconsiderado pela decisão”. Apesar de sua nítida discordância com a decisão, ao ser questionado sobre a soberania institucional do Senado Federal e a submissão da decisão do ministro ao Plenário do STF, o chefe do Congresso Nacional manifestou que: “uma vez notificado de uma decisão monocrática de qualquer ministro do Supremo, é obrigação de qualquer brasileiro, independentemente da posição que ostente, cumprir a decisão”.
Após a entrevista de Rodrigo Pacheco, diversos senadores manifestaram seu descontentamento com a decisão monocrática, por considerar uma afronta à soberania do Senado, bem como uma interferência de equidade entre os poderes. Ressaltaram que o critério de julgamento utilizado para a respectiva decisão poderá abrir precedente perigoso para situações assemelhadas (cujos requisitos mínimos estão preenchidos) e que estão, na linha cronológica e temporal, aguardando o exame oportuno pela autoridade competente, a exemplo da CPI “Lava Toga”. Sem aprofundar o tema, é preciso ressaltar que a República tem como poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário – artigo 2º da Constituição da República – princípio basilar. Contudo, nos últimos anos têm sido comuns decisões do STF dessa natureza, no sentido de discutir ato administrativo e “interna corporis” de outro poder, enquanto poder.
As comissões parlamentares de inquérito, também conhecidas pela sigla CPI, possuem destaque na nossa Constituição como elemento-chave para o exercício das atividades de fiscalização e investigação no Poder Legislativo no Brasil, em todos as esferas (federal, estadual e municipal). De acordo com o catedrático José Afonso da Silva, as CPIs são organismos que desempenham papel de grande relevância na fiscalização e controle da administração, a ponto de receberem, pela Constituição de 1988, poderes de investigação próprios das autoridades judiciárias, além de outros previstos nos regimentos internos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.
A Carta Magna, conforme já destacado no início deste artigo, estabelece, em seu parágrafo terceiro do artigo 58, os três requisitos necessários para que uma CPI possa ser instaurada, quais sejam: “requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas aos órgãos de controles externos, para que promova a responsabilidade administrativa, civil ou criminal dos infratores”. Na hipótese de atendimento ao texto constitucional apontado, a doutrina majoritária entende que cabe ao presidente da Casa Legislativa a adoção das medidas necessárias para a instauração de uma CPI. O conhecimento perfilhado é de que a investigação parlamentar é um direito constitucional à disposição das minorias no Legislativo, não havendo discricionariedade para sua instauração.
O recém-aposentado ministro Celso de Mello já observou: [...] A rejeição de ato de criação de Comissão Parlamentar de Inquérito pelo Plenário da Câmara dos Deputados, ainda que por expressiva votação majoritária proferida em sede de recurso interposto por líder de partido político que compõe a maioria congressual, não tem o condão de justificar a frustração do direito de investigar que a própria Constituição da República outorga às minorias que atuam nas casas do Congresso Nacional. Em que pese o prevalente entendimento sobre a CPI ser um direito constitucional subjetivo das minorias parlamentares, não se pode desconsiderar o momento único e histórico que vivenciamos. O ministro Barroso, ao mencionar em sua decisão que “se trata de mera reiteração de jurisprudência antiga e pacífica do tribunal”, está por desprezar o ineditismo da situação do país. Em uma simples análise de “jurisprudência”, o professor Miguel Reale explica a palavra (em sentido estrito) como a forma de revelação do direito que se processa por intermédio do exercício da jurisdição, em virtude de uma sucessão harmônica de decisões dos tribunais. Não obstante haver decisões harmônicas quanto às CPIs, não pode o aplicador correlacionar o presente caso exclusivamente ao entendimento jurisprudencial, haja vista peculiaridades que os diferenciam dos já apreciados, por modificações jurídicas, políticas e sociais no momento da sua aplicação.
Um ano após a pandemia, o Brasil se tornou o epicentro da Covid-19, com mais de 375 mil mortos, mais de 13 milhões de contágios, e ritmo lento de vacinação, sem sinais de arrefecimento da curva da doença. Esses dados sustentam que nunca, sequer, houve um momento como este no nosso país. A pandemia acabou por evidenciar males que já assombravam a ciência jurídica brasileira, mas que hoje se mostram incontornáveis. Há uma escassez – gritante – de segurança jurídica, que, por sua vez, consubstancia-se na ausência de coerência e integridade nas decisões judiciais. Quanto a essa ponderação, nobríssima a posição do presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco, ao demonstrar sobriedade e racionalidade em apenas cumprir a decisão judicial ao invés de questioná-la, levando em consideração, assim, o momento excepcional de união que necessita o Brasil. Sua visão também foi externada, ao ressaltar que o enfrentamento inteligente à pandemia seria pautado na pacificação, na união e na coordenação, de modo a sobrelevar célebre escrito de Cícero (106 a.C – 43 a.C), segundo o qual “não basta adquirir sabedoria; é preciso, além disso, saber utilizá-la”.
Dessa forma, em que pese a polêmica que norteia o assunto, não se pretende aqui, simplesmente, afirmar a ilegitimidade da decisão do ministro Barroso, mas sim observar que ela se demonstra absolutamente questionável quando não há nítida análise quanto à conveniência e a oportunidade, devidamente justificadas pelo presidente Rodrigo Pacheco. Dentre várias críticas ao sistema de invocar precedentes (em alguns casos, jurisprudência) de modo açodada pelo julgador, Lenio Streck, por meio da sua “Crítica Hermenêutica do Direito”, assevera, dentre outras percepções: a) imperiosa a cisão entre interpretação e aplicação; b) o equívoco de se pensar que a força vinculante do precedente está na sua razão da autoridade, e não pela qualidade das suas razões; c) o dever de coerência e de integridade não significa a incorporação irrefletida de uma “teoria dos precedentes”.
A fim de trazer maior concretude ao seu julgado, no dia 14 de abril deste mês, a decisão monocrática do ministro Luís Roberto Barroso foi levada ao Plenário do STF, que por 10 votos a 1, decidiu confirmar a decisão, para manter a determinação de abertura de Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar supostas omissões no combate à pandemia de Covid-19. Nesse contexto, o presente propôs reflexões sobre a inoportuna abertura da CPI da Pandemia, a fim de alertar que diante da gravidade do momento que vivenciamos, todas as atenções e esforços devem ser implementados para o fim comum que ainda permite a sociedade dialogar – independente de ideologias que nos colocam em regime de guerra velada – enquanto pessoas jurídicas ou físicas, o enfrentamento da Covid-19.
Em tempo, prestes a finalizar a redação final deste artigo fomos surpreendidos por uma decisão judicial, emanada pela seção judiciária federal do Distrito Federal, impedindo os membros da CPI – imposta pelo STF – de votar no senador Renan Calheiros para relatar os trabalhos finais. Surgem, daí, alguns apontamentos e um questionamento: o Poder Judiciário impõe a abertura de uma CPI! O Poder Judiciário impõe a composição dos trabalhos diretivos de uma CPI! O Poder Legislativo, uma vez mais, lecionará aos demais poderes sobre como praticar o “poder moderador” ou imporá – seguindo a linha dos ensinamentos que os demais poderes estão praticando – escudado na Constituição da República, o respeito as suas prerrogativas e poderes, “custe o que custar” ou “à vida de qualquer ser humano que vier a ceifar”?
E, antes que se diga que a fala do presidente do Senado, publicada nas últimas horas do dia 26 de abril, em “não cumprir a decisão de primeiro grau” já demonstra uma contradição ao ser discurso inicial e uma imposição em descaso à vida humana, é bom lembrar que o relator de uma CPI não é eleito pela comissão, mas indicado pela sua presidência, ou seja, infelizmente, no comando judicial “está indistinto o nada e o coisa alguma”, parafraseando Fernando Pessoa. Felizmente o desembargador Francisco de Assis Betti, vice-presidente do TRF1, respeitando a autonomia e independência orgânica do parlamento, humildemente leu o regimento interno do Senado Federal e compreendeu que o relator da CPI não é eleito por votação, mas sim, designado, de modo a afastar “factoides” e “conjecturas” com uma comissão que, sequer, instalada. Cenário lamentável, parece uma fábula, mas tudo isso que estamos presenciando é verdade!
Chegou o momento de conclamar a união de todas as forças democráticas da sociedade brasileira, os poderes, as autoridades, a sociedade no geral, a fim de garantir o vetor dos direitos fundamentais, qual seja, o direito à vida. Afinal, já nos ensinava Salomão em provérbios 2:11: “O bom senso o guardará, e o discernimento o protegerá”.
*Grhegory P P M Maia - procurador de carreira da Assembleia Legislativa de Mato Grosso; atual consultor jurídico geral do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso; doutorando em direito constitucional; professor da UFMT. Anne Karoline Dorileo – assistente jurídico do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso, pós-graduada em direito processual civil pela Fundação Escola Superior do Ministério Público de Mato Grosso.
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