Por Adriana Mendes e Anderson Pinho*
Era uma noite de outono de chuva fria e de intensidade moderada. Poucos carros na rua, poucas pessoas em circulação. Quem vive na capital mato-grossense sabe que em dias de frio e chuva, o cuiabano prefere mesmo o aconchego do lar.
O clima de sextou reuniu no oitavo andar de um edifício na Lava-Pés cinco amigos, que mantém o hábito de reuniões com o intuito de jogar conversa fora de dar um F5 no plantão. A noite agradável era regada a altos papos, memórias afetivas, uma cervejinha e o preparo de uma iguaria caprichada.
Entre risos e gargalhadas, aquele clima de alegria foi interrompido por uma mensagem de WhatsApp. A irmã da anfitriã questionara se a dona do apartamento estava ouvindo gritos de socorro. Fomos imediatamente para sacada. De lá foi possível ouvir claramente: “socorro, me ajudem”. As palavras ecoavam no ar, trazendo uma mistura de agonia, aflição, desespero e o sentimento de impotência.
Tentamos identificar do alto de onde vinha aquele pedido desesperado. Agoniados, eu e o jornalista Anderson Pinho pegamos um guarda-chuva e descemos para tentar localizar aquela voz. No caminho, tentávamos prever a motivação do pedido de socorro: assalto a mão armada, acidente de trânsito, queda, mal súbito, tentativa de sequestro?
Depois de caminhar por alguns metros, encontramos outras duas pessoas, moradoras do bairro Duque de Caxias, que também haviam escutado os apelos. A rua era sombria, mas lá fomos nós. Já sabíamos que, pelos gritos, estávamos perto do local exato de onde eles partiam.
Encontramos na esquina, bem atrás do prédio onde estávamos naquela sexta-feira, um sobrado desocupado: havia duas lâmpadas acesas, mas o local tinha mato e sinais de abandono. Ali funcionara há um tempo a unidade estadual da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). O painel ainda guardava a forma da logomarca luminosa retirada que identificava o local.
Uma lâmpada iluminava o pavimento superior e outras duas no térreo permitiam ver com clareza uma cena triste e dolorosa: ali estava um homem excessivamente magro, negro, com cerca de 1,75 de altura e aparentando ter pouco mais de 40 anos, pendurado na grade do portão, formado por lanças com a cabeça em forma de triângulo.
Estava de cabeça pra baixo com duas lanças que transfixaram a panturrilha em dois locais da perna, provocando muito sangramento. O sangue jorrava, escorria pelo portão, passava pelo corpo da vítima e pingava na calçada molhada. O cheiro era forte. Concluímos que, ao buscar abrigo da chuva, o sem-teto tentou pular o portão usando chinelos e escorregou, ficando preso nas grades.
Um vizinho pediu para ele ter calma, alertando que qualquer tentativa de retirá-lo poderia causar mais dor e aumentar o ferimento. O homem gritava de agonia. Dois moradores das redondezas procuraram aliviar o peso do corpo, removendo uma mochila pesada e apoiando com as costas o corpo do homem. “Temos que esperar ajuda”, ponderou, diante daquela cena chocante.
A situação atraiu curiosos, alguns sugeriram que ele poderia ser um ladrão tentando roubar fios de cobre. “Ladrão? Por mim deixava ele aí”. Outro disse “é bom que aprende” (com o acidente). Nesses comentários, sobrava julgamento, faltava compaixão, lembrando que estávamos próximos da Semana Santa.
Por outro lado, outros rapazes viram ali razões para ajudar e seguraram o corpo do homem para aliviar seu sofrimento. Ação que mostra que temos, sim, pessoas solidárias, sensíveis ao sofrimento humano. Pessoas que sabem que não nos cabe julgar ninguém, pois para isso existe o sistema de Justiça.
A Polícia Militar demorou uns 15 minutos para chegar ao local. Apareceram cinco carros, até mesmo da Rotam, a Força Tática da PM. Segundo disseram, ouviram até tiros, o que não era verdade. Os policiais se espantaram com a situação. Alguns riram. “Vamos puxar aí se ele tem alguma passagem ou mandado em aberto”.
O SAMU e o Corpo de Bombeiros chegaram posteriormente. Foi necessário, primeiro, serrar as duas setas (cabeça da lança) que perfuraram a panturrilha do sem-teto. Na sequência, serraram o conjunto que sustentava essas lanças para retirar o homem do portão. Tudo isso embaixo de chuva, que diminuiu só no final da operação.
No boletim de ocorrência da PM, o caso foi registrado como “ocorrência atípica” de natureza diversa. O homem, de 46 anos, em situação de rua, faz parte de um grupo crescente de pessoas nessa condição em Cuiabá. Segundo relatório divulgado em 2023 pelo Ministério de Direitos Humanos e da Cidadania, a capital tem mil pessoas nesta situação.
Nas redondezas do bairro por onde perambulava, ele era conhecido como usuário de drogas. Registros policiais indicam envolvimento em atividades de tráfico e associação criminosa.
Casa fechada, abandonada, é um outro problema. Recentemente, a prefeitura publicou um decreto regulamentando uma lei municipal de 2019 que determina que imóveis em situação de abandono passem a ser propriedade do município. Muitos desses imóveis servem como abrigo para a população de rua. É uma situação que envolve a temática social e de saúde pública.
Ao que tudo indica, o homem apenas queria abrigo naquela sexta-feira chuvosa. Dali foi levado para o Pronto Socorro Municipal de Cuiabá onde foi atendido, passa bem, mas não há previsão de alta.
Repórteres que somos, testemunhamos não apenas um acidente isolado, mas o retrato da nossa sociedade. Um grito de socorro por atenção a questões profundas que precisam ser debatidas com uma boa dose de empatia, compaixão e vontade política.
*Anderson Pinho é jornalista em Cuiabá
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