por Flávia Lima*
Nesta semana, o presidente Jair Bolsonaro deu uma indicação consistente de que vai lançar mão do que estiver a seu alcance para que a imprensa deixe de fazer jornalismo e se dobre ao que ele próprio considera relevante em seu governo.
Na terça-feira (6), o presidente anunciou o fim da obrigatoriedade de as companhias publicarem suas demonstrações financeiras em jornais de grande circulação e nos diários oficiais dos estados.
No mesmo dia, uma reportagem do jornal Valor Econômico dizia que Carlos, um dos filhos de Bolsonaro, tem usado o gabinete do pai no Palácio do Planalto para cobrar dos ministros uma defesa mais enfática do governo diante do que vê como “ataques da imprensa”.
Não se sabe como os ministros reagiram ao pedido de Carlos. Mas, ao apresentar a medida em evento em São Paulo, o próprio presidente disse que estava retribuindo tratamento dado a ele pelos jornais.
Desde meados da década de 1970, a lei exige que as sociedades anônimas (empresas cujo capital é dividido em ações) publiquem suas informações em um jornal de grande circulação e no diário oficial do estado onde têm sede. São balanços anuais, editais e atas.
Os tempos mudaram e o acesso amplo à internet tornou a exigência obsoleta. Num discurso rancoroso, no entanto, Bolsonaro conseguiu transformar uma discussão legítima em um ato de retaliação.
A medida afeta jornais espalhados pelo país e fere, sobretudo, aqueles especializados em economia, que têm nesse tipo de publicidade uma fonte segura de receita.
Quanto aos valores envolvidos, é possível dizer que, em todo o país, existem cerca de 5.000 empresas com faturamento acima de R$ 300 milhões ao ano—boa parte delas constituída na forma de sociedade anônima, portanto obrigada a publicar balanços em papel.
Não se sabe quanto o grupo gasta só com balanços.
Com a chamada publicidade financeira (que inclui tudo o que é obrigatório mais informações, como fatos relevantes e aberturas de capital), as companhias gastam, em média, de R$ 300 mil a R$ 400 mil por ano, segundo a associação das companhias abertas, a Abrasca, que já se posicionou a favor da medida.
Há um subgrupo, que inclui gigantes como Petrobras, Vale e os grandes bancos. Estimativas apontam desembolsos de R$ 5 milhões a R$ 8 milhões por ano em informações financeiras, obrigatórias ou não, que, nesses casos, aparecem em mais de um jornal.
Sem dúvida, o maior atingido é o Valor Econômico, mas a gama é ampla e atinge também jornais regionais, muitos cuja sobrevivência está atrelada a esse tipo de publicidade.
No caso do Valor, principal jornal de economia do país, cálculo feito por pessoas a par do assunto falam num corte de 30% a 40% da receita com publicidade do jornal.
No Estado de S.Paulo, o efeito seria menor, mas não desprezível. Reconhecido na área econômica, o jornal é o segundo destino dessas publicações.
Mesmo a Folha vai ter que se ajustar. Em comparação aos outros grandes, tem faturamento bem menor com a chamada publicidade financeira, mas cerca de um terço dessa receita vem de balanços.
A função dos jornais sempre foi dar confiabilidade e publicidade aos atos das companhias, além de segurança aos acionistas, sobretudo minoritários.
Hoje faz todo o sentido que a obrigação seja colocada em xeque. Os jornais sabem disso.
Do modo como se posicionou, o presidente expôs as suas intenções, acolhendo com gosto antigo pleito empresarial.
Passou por cima de decisão do Congresso, que em abril deste ano dera o aval a uma lei que já dispunha sobre o tema.
Para dar um tempo de ajuste à imprensa, decidiu-se que, a partir de janeiro de 2022, as companhias poderiam dispor suas informações em sites de notícias, levando apenas um resumo para os jornais. A exigência de publicação nos diários oficiais seria eliminada.
O presidente assinou a lei, mas recuou. Com isso, as informações podem ser publicadas “sem custo” (as empresas já pagam taxas) nos sites da Bolsa de Valores e no da CVM, o xerife do mercado de capitais.
A briga promete ser boa. Perdem não só as empresas jornalísticas como também os diários oficiais dos estados, considerados pelas próprias companhias caros, anacrônicos, mas com grande força política.
A nova decisão foi tomada por meio de uma MP (medida provisória), que vale por 60 dias, renovável pelo mesmo período, e precisa ser aprovada pelo Congresso. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, já indicou baixa receptividade à iniciativa mas, até que o destino da MP seja conhecido, as incertezas se mantêm.
A família Bolsonaro passou muitos anos vendo a imprensa apontar os problemas dos governos anteriores, mas, por algum motivo, achou que seria diferente com a sua chegada ao poder. Se os jornais continuarem fazendo o seu papel, não será.
*Flavia Lima é repórter especializada em economia, formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. É ombudsman da Folha desde maio de 2019.
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