A meia hora de começar o terceiro embate da Seleção verde-amarela na Copa – Brasil e Camarões - os torcedores ainda se movimentavam pelas ruas de Cuiabá em busca de um lugar legal para ver o jogo.
Alguns iam à casa de familiares ou de amigos para um churrasco com cerveja gelada. Outros a um bar ou a Fan Fest, que transmite em telão todas as disputas do Mundial e nessa segunda-feira recebeu 45 mil pessoas.
Enquanto isso, a maior parte dos 824 presidiários do Centro de Ressocialização de Cuiabá (CRC), antigo Carumbé, que perderam o direito de ir e vir com liberdade, também se preparavam para acompanhar a Seleção.
No início da tarde desta segunda-feira, no CRC, os detentos tinham apenas três certezas na vida. Uma: ali são todos inocentes e foram condenados por engano. Duas: vão sair da prisão dentro de dias, não importa a condenação que receberam. E três: o Brasil venceria Camarões.
Em meio a tantas histórias trágicas, uma televisão antiga, de 20 polegadas, inicia a transmissão. Uma caixa de som amplificou a narração, para 33 presidiários da “ala fraca”, de trabalhadores.
A ala leva esse nome porque o Carumbé passa, há 10 anos, por um processo de tentativa de humanização. Justamente ali, ficava a extinta “ala forte”, onde cumpriam pena presidiários mais perigosos.
m dos que assistiram o jogo na “ala fraca” era o universitário Thiago Jardim, 21 anos. Ele ainda se lembra da última Copa em liberdade. Era 2010 e a festa foi em casa e depois com amigos. Há um ano, a vida mudou, marcada por uma tragédia familiar. Tomou as dores do irmão e matou a cunhada. Já estava no segundo ano de Administração. A vida ruiu. Só recebe visita do pai. A mãe não consegue vivenciar isso, sofre do coração. Thiago trabalha confeccionando carteirinhas para parentes de presos que fazem visita. Vendo a disputa entre Brasil e Camarões, ele aposta em Neymar. E não deu outra, fez dois. “A Seleção vai até a final!”, comenta.
Igual a todo brasileiro, os presos do Carumbé são comentaristas esportivos.
Preso há oito meses, Ednei Dourado, 33, reclama muito no pátio da Unidade 2, também chamada de contêiner, onde a direção do presídio instalou excepcionalmente uma TV de 40 polegadas. “Fred tem que sair, não está jogando nada”. Minutos depois, Fred acabou fazendo um gol, contrariando as previsões de Ednei, que é não de muita conversa.
Um grupo de mais de 30 presidiários assistiam ao jogo no contêiner. Nesse local, as celas são de metal. Parecem de fato conteiners de guardar restos da construção civil, só que ventilados.
Luciano Vieira, 29 anos, responde por três assaltos. Tem 11 anos de condenação e três anos de cela. Ele estava muito feliz com Neymar. “O craque está salvando a pátria”. Luciano já está na terceira Copa preso: 2006, 2010 e 2014. “Lá fora eu via os jogos com a família, era muito bom”, recorda-se.
Para Fernando Pereira, 26, há oito anos preso, “a Copa é uma alegria no presídio”. Se fosse Felipão, teria convocado Robinho, que “faz falta na seleção, para jogar um futebol alegre, ao lado de Neymar”.
No meio de tantos homens, uma alma feminina, torce com delicadeza. A travesti Duda, 31 anos, balança uma bandeirinha do Brasil de plástico. Foi presa por tráfico, mas afirma que é usuária apenas. “Era viciada em pasta base. Mas aqui tive que parar, querendo ou não”. Já está há um ano e dois meses no presídio, onde conheceu um companheiro. Não recebe visitas. “A família me ignora por causa da minha sexualidade e também porque estou presa”, lamenta. Duda vive na ala gay, junto com outros seis presos de orientação sexual diferente da hétero.
Um deles é Rael da Silva, 35 anos, homossexual, condenado por estupro de um menor de idade. Na cadeia, trabalha para reduzir a pena. Faz artesanato com chifre de boi e atua como “jumbo”, carregando sacolas das mulheres dos detentos em dias de visita.
Os que trabalham como ele são chamados de “amarelinhos”, porque usam uma camiseta amarela. Alguns presos são amarelinhos da horta coletiva. Outros fazem serviços elétricos.
Os detentos do CRC não têm uniformes. Para o diretor da unidade prisional, Winkler de Freitas Teles, isso seria importante por medida de segurança. “No caso de fuga, o uniforme é um diferencial”, explica.
Winkler assegura que está trabalhando há um ano pela dignidade dos detentos do CRC. “A urgência aqui é prédio, precisamos de estrutura”, reivindica. Ele não vivenciou nenhum motim durante sua gestão. Com apenas 27 anos, já dirigiu cinco presídios e acredita no diálogo para mudar a vida das pessoas e da instituição.
Algumas dessas histórias de vidas são impressionantes. Aclides Marcelo Gomes, de 30 anos, mais conhecido como “Menino Mau”, por exemplo, tem 114 anos de penas a cumprir. Não deve sair vivo do Carumbé. Mas, na opinião dele, sim, a liberdade é possível, em nome de Deus. “Estou quase terminando de cumprir a pena”, assegura. Ele diz ter se arrependido dos crimes que cometeu, boa parte deles homicídio, e virou pastor da igreja “Deus é Amor”. O diretor do presídio atesta que ele mudou “da água para o vinho”. Nunca gostou de futebol. Em dia de Copa, não assiste aos jogos porque a religião não permite.
Na ala J, outros evangélicos também ignoram a Copa, mas muitos vão assistir à disputa. Menos o pastor Luciano, 38, que está preso por dois homicídios. “O pessoal aqui é tudo doente por futebol, menos eu”, ri. Como a maioria dos presos, só recebe visita da mãe, que mora em São Paulo, mas, de sete em sete meses, mais ou menos, dá um jeito de vir a Cuiabá.
Muitas mulheres também mantêm relação com os presos. Os dias de visita são as terças, quintas, sábados e domingos. Podem fazer amor na cela, com o devido respeito dos colegas. Essa talvez seja uma das regras mais rígidas do presídio.
Em uma ala próxima, Donizete Pinho da Silva, 33 anos, está que não se aguenta dentro da cela. Queria estar livre para festejar a Copa. Mas pegou 18 anos de prisão, por assalto. Quando estava lá fora, era jogador amador e vivia disso em Mato Grosso. Chegou a disputar no Estádio do Verdão, que foi derrubado, para dar lugar à Arena Pantanal. “Cerveja, mulher e futebol são as três paixões nacionais”, brinca.
O jogo segue e dentro do presídio dava para ouvir os gritos de gols, afinal foram quatro do Brasil e apenas um de Camarões.
Quem vai ganhar o bolão que o presidiário Patrick Almada, 28, ex-servidor público, organiza a cada jogo? No último, o campeão levou só R$ 36. Cada preso pode movimentar somente R$ 60 por semana. Almada explica que o bolão é só uma brincadeira para passar o tempo, porque ali dentro o mais fácil é cair na depressão. Quando entrou no CRC, há 18 meses, pesava 108 quilos. Hoje não passa dos 80. Ele responde por divulgação de vídeo de pornografia infantil. Na cadeia, passou em sétimo lugar no vestibular para Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), via Enem. Para ele, a cadeia tem sido “uma lição terrível”. Mas, assim como no futebol, muito se perde e muito se ganha. “Ganhei uma chance de viver de forma bem diferente”, diz ele, que sai livre mês que vem.
Como ele, o estudo, no CRC, toma conta de boa parte do dia de 420 condenados. Tem aula de manhã, à tarde e à noite. Ensino estadual, Fundamental e Médio.
Trabalhar é uma arma poderosa de recuperação prisional. Por causa disso que, segundo o diretor do CRC, mais de 500 presos trabalham, sendo 100 fora dos muros. Os outros fazem artesanato, atuam em uma madeireira e na empresa de placas de automóveis, dentro da unidade.
Para alguns, o tempo de presídio é quase tão curto quanto o tempo de um jogo e da Copa, que vai durar pouco mais de um mês. É o caso do motorista Éder de Souza, 34 anos. Ele está preso porque não pagou pensão alimentícia para a filha de oito anos. A ex-mulher dele entrou na Justiça. “Estou esperando entrar meu salário para pagar e sair daqui”. Segundo ele, a seleção estava desentrosada, mas agora “pegou no tranco”.
Por outro lado, no CRC, muitos terão muito tempo para refletir sobre o que fizeram. Aí já é o caso do ex-vereador Nivaldo Gomes, 51 anos, condenado como mandante de dois homicídios. Lá fora era proprietário de um posto de combustível. Dentro do presídio, trabalha o dia todo como cozinheiro, para esquecer que a mulher e os filhos o abandonaram. Menos a mãe. “Mãe não abandona, mãe é para sempre”, constata. Previsão de chegada da liberdade: 2016.
Homicídios, assaltos, latrocínios, estupros, são muitas as histórias violentas e a revolta da reclusão. Fica a sensação de que qualquer presídio é um barril de pólvora, até por conta da superpopulação. No CRC, a capacidade é de 380, mas tem o dobro de “hóspedes”.
O jogo segue e termina em 4 a 1. O agente prisional fecha a cela, fazendo forte barulho de metal, para quem fica e para quem sai.
Do lado de fora do presídio, a cidade, que estava totalmente parada, volta a se movimentar, com os torcedores em trânsito. É vida que segue em Cuiabá. A Arena Pantanal sedia nessa terça-feira o quarto e último jogo da Copa na cidade, entre Japão e Colômbia.
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