Centenas de jovens migram para as cidades em busca de emprego, trabalho e renda. Com isso, inúmeras comunidades ribeirinhas ficarão despovoadas, abrindo caminho para empreendimentos energéticos e de outros tipos no território Guadakan, termo na língua Guató pelo qual o Pantanal é chamado.
Esse é o prognóstico do pesquisador Jorge Eremites de Oliveira, que acabou de lançar o livro gratuito intitulado “A Grande Guerra do Paraguai e a Tríplice Aliança: história, historiografia e memória”, em conjunto com o pesquisador Paulo Marco Esselin, pela Editora Nagô.
Em entrevista ao #VGN, Eremites falou sobre os efeitos do conflito no Pantanal Norte, que também foi território dessas batalhas, e sobre como a política ambiental dos governos atuais de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul afeta a vida de indígenas como o povo Guató, que auxiliou o Brasil na vitória contra o Paraguai e hoje luta para garantir direitos básicos. Confira a entrevista na íntegra:
VGN - Qual a relação entre a Grande Guerra, vulgarmente conhecida como “Guerra do Paraguai”, e os povos indígenas, principalmente do Pantanal de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul? Qual foi o efeito da guerra para os povos indígenas dessa região?
Pesquisador - A Grande Guerra entre o Paraguai e a Tríplice Aliança (1864-1870) é um divisor de águas na história de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, que à época, juntamente com parte de Rondônia, faziam parte da extensão territorial da então Província de Mato Grosso. Este foi o maior conflito bélico registrado na história dos Estados-nações que fazem parte da América Latina. Por isso, o evento possui uma relação direta com a atual situação histórica de desterritorialização, reterritorialização e luta por direitos vivida por vários povos indígenas do Pantanal e adjacências, na bacia hidrográfica do alto curso do rio Paraguai. Este é o caso dos povos Guató, Kadiwéu, Kaiowá, Kinikinau, Ofaié e Terena, dentre outros.
Exemplo disso é a situação do povo Ofaié, anteriormente apelidado de “Guaxarapo” e, à época da Grande Guerra, de “Guaxi” e “Xavante”, mas que atualmente está assentado em uma área distante do Pantanal, no município de Brasilândia, Mato Grosso do Sul, na bacia hidrográfica do rio Paraná.
A maioria desses povos perdeu o acesso aos grandes rios da região, como verificado para a imensa maioria das comunidades do povo Terena em Mato Grosso do Sul. Significa dizer que havia um “antes” e passou a haver um “depois” do término da Grande Guerra no antigo Mato Grosso, sobremaneira para os povos originários estabelecidos na região pantaneira desde muito antes dos primeiros invasores europeus chegarem à América Central, em 1492. Por isso, a grande novidade do livro “A Grande Guerra entre o Paraguai e a Tríplice Aliança (1864-1870): história, historiografia e memória”, publicado pela Editora Nagô e organizado em parceria com o Prof. Dr. Paulo Marcos Esselin, está na divulgação de estudos realizados por diversos pesquisadores sobre a participação indígena no conflito armado e suas consequências no tempo presente.
Antes da Grande Guerra, a população indígena era muito superior em relação à população branca e negra em vilas que, posteriormente, foram transformadas em cidades, como é o caso de Corumbá e Miranda, no atual Mato Grosso do Sul. No começo de dezembro de 1864, semanas antes de ter início a invasão paraguaia no antigo Mato Grosso, os povos Guató, Kadiwéu, Ofaié, Terena, Kinikinau e outros detinham a posse de milhões de hectares de terras e águas na região.
Depois da Grande Guerra, especialmente a partir de 1867, quando o povo Guató, apenas para citar outro exemplo, foi acometido por uma avassaladora epidemia de varíola e, nos anos seguintes, de outras doenças trazidas de além-mar, a população indígena declinou em termos demográficos. Mesmo antes de 1867, durante as batalhas contra os militares paraguaios, indígenas de vários povos foram infectados pela cólera e muitos morreram em decorrência da doença. Outros tantos faleceram durante os conflitos diretos com os invasores sob o comando geral de Francisco Solano López, então presidente da República do Paraguai.
Em linhas gerais, o efeito da guerra foi devastador para a maioria dos povos indígenas do Pantanal. Após terem defendido com bravura singular seus territórios e o território nacional do Brasil, inclusive de modo a dar a própria vida em defesa do Brasil, a maioria recebeu apenas três botinas de presente do governo central: “duas no pé e uma na bunda”. Esta explicação foi dada em 2003 pelo saudoso cacique Armando Gabriel, da Aldeia Córrego do Meio, Terra Indígena Buriti, localizada nos municípios sul-mato-grossenses de Dois Irmãos do Buriti e Sidrolândia.
Ele dizia isso a respeito da retribuição dada pelo governo imperial ao povo Terena, que tanto fez de positivo em defesa do território nacional do Brasil. Hoje em dia, fazendeiros da região de Miranda chegam mesmo a dizer, em panfletos apócrifos distribuídos de maneira dolosa na região, que o povo Terena seria “paraguaio”, isto é, que seria estrangeiro dentro do próprio país que ajudaram a construir e que tanto têm defendido. O assunto está devidamente explicado no referido livro, que está disponível, no formato e-book, para acesso gratuito no endereço www.nagoeditora.com/e-books-gratis. Tivemos a preocupação de publicá-la desta maneira porque nossas pesquisas foram financiadas, em grande parte, com recursos oriundos dos cofres públicos e, portanto, não seria razoável vender o livro, que possui 502 páginas, o que dificultaria seu acesso por parte do grande público.
VGN - A história oficial aponta o município de Várzea Grande, que completou 157 anos, como um acampamento de prisioneiros paraguaios, mas também foi um aldeamento do povo Guaná, etnia que vivia na região. O que o livro diz sobre essa etnia? Qual é a sua denominação correta?
Pesquisador - O termo “Guaná” é um apelido cunhado em tempos coloniais para se referir ao grande povo Chané ou Txané, de matriz linguística e sociocultural aruák. Txané significa gente, homem ou ser humano no idioma terena. Em tempos coloniais e imperiais, muitas famílias Chané se deslocaram da região de Corumbá, precisamente da localidade de Albuquerque, à época conhecida como “Albuquerque dos Índios”, para a região de Cuiabá e adjacências, como é o caso do atual município de Várzea Grande. O assunto está muito bem explicado na dissertação de mestrado da Profa. Dra. Verone Cristina da Silva, intitulada “Missão, aldeamento e cidade. Os Guaná entre Albuquerque e Cuiabá”, defendida com brilhantismo em 2001 junto ao Programa de Pós-Graduação de História da UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso).
No livro “A Grande Guerra entre o Paraguai e a Tríplice Aliança (1864-1870): história, historiografia e memória”, há um capítulo específico sobre a história do povo Terena da região de Buriti e outro sobre a história do povo Kinikinau, que também é de matriz aruák.
A bem da verdade, a chamada história oficial costuma ser uma historiografia com a chancela do Estado e da branquitude alojada no poder político central e regional. Essa história é feita pelo colono, conforme criticado por Franz Fanon no clássico “Os condenados da terra”, livro publicado no Brasil em 1968. Em suas palavras: “O colono faz a história e sabe que a faz. E porque se refere constantemente à história de sua metrópole, indica de modo claro que ele é aqui o prolongamento dessa metrópole. A história que escreve não é, portanto, a história da região por ele saqueada, mas a história de sua nação no território explorado, violado e esfaimado.
A imobilidade a que está condenado o colonizado só pode ter fim se o colonizado se dispuser a pôr termo à história da colonização, à história da pilhagem, para criar a história da nação, a história da descolonização”. Dito isso, vale registrar que nosso livro, sobretudo a segunda parte da obra, não é uma história oficial escrita pelo colono, mas uma história criticamente construída para se opor a este tipo de narrativa, que geralmente é desprovida de cientificidade e se apresenta como herdeira das práticas colonialistas de bandeirantes e seus descendentes.
VGN - O povo Guató, cuja presença é muitas vezes apagada pelo termo “ribeirinho”, vive um processo de ataque por parte dos governos estaduais e federal. Qual é a sua avaliação sobre a chamada Lei da Pesca, ou Lei do Transporte Zero, que proíbe a pesca no Estado de Mato Grosso? Recentemente, o site VG Notícias divulgou que o governador do estado, Mauro Mendes, está diretamente interessado na proibição em razão do interesse comercial na piscicultura e em frigoríficos de peixes, que perdem mercado para pescadores. Qual é a importância do peixe para essas populações indígenas?
Pesquisador - O povo Guató, historicamente conhecido como canoeiro e pescador, é um dos mais antigos povos originários do Pantanal. Seus antepassados mais longevos, dos quais entende descender, chegaram à região há mais de 8 mil anos, conforme atestam pesquisas arqueológicas e assim percebem as lideranças de várias comunidades. Desde aqueles tempos primordiais, o peixe é a base da proteína consumida diariamente e, nos dias de hoje, a principal atividade econômica para a obtenção de renda para o sustento das famílias. Sem a pesca, os mais jovens poderão migrar para as cidades em busca de emprego, trabalho e renda, o que causará a depopulação de muitas comunidades.
Sem a pesca, os mais jovens poderão migrar para as cidades em busca de emprego, trabalho e renda, o que causará a depopulação de muitas comunidades
Após a promulgação da Carta Constitucional de 1988 e, sobremaneira, a partir de uma legislação inferior, criada posteriormente, muitas comunidades do povo Guató passaram a ser culposa e dolosamente rotuladas de “ribeirinhas”. Esta rotulação conta com o aval, principalmente, de governos estaduais e municipais e de organizações não governamentais ambientalistas. Por isso, várias unidades de conservação, criadas a partir dos anos de 1980, foram implantadas dentro do território tradicional e historicamente conhecido do povo Guató, como é o caso do Parque Nacional do Pantanal Matogrossense, apelidado de Parque Nacional do Pantanal MaGUATÓgrossense, criado no município de Poconé, em Mato Grosso.
Atualmente, em face da ação criminosa de pessoas não indígenas que destroem o Pantanal, inclusive por meio de grandes incêndios, os quais não existiam antes de fazendeiros brancos se instalarem na região, os governos de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul criaram iniciativas para prejudicar o modo de vida dos povos originários e das comunidades tradicionais, como é o caso da Lei da Pesca ou Lei do Transporte Zero, bem como da Lei do Pantanal e da proposta de Estatuto do Pantanal. Em linhas gerais, a ideia apregoada de sustentabilidade está diretamente ligada à perspectiva colonialista de lucro sem fim. Proibir o transporte do pescado sufoca economicamente a comunidade da Terra Indígena Baía dos Guató, localizada em Barão de Melgaço, e muitas famílias de pescadores que vivem na Baixada Cuiabana e em outras partes do Pantanal de Mato Grosso, como ao longo do rio Paraguai, no município de Cáceres. Isso tudo é feito para favorecer a modalidade de pesca desportiva, conhecida como “pesque e solte”, mais bem compreendida como “pesque e solte para morrer”. Ocorre que muitos peixes capturados dessa maneira ou são comidos a bordo das embarcações de turistas ou soltos no rio para servir de alimentos a piranhas, pirambevas e outras espécies carnívoras.
Recentemente, no dia 7 de abril de 2024, o Conselho de Lideranças do Povo Guató no Pantanal/Guadakan divulgou uma nota pública a respeito do Projeto de Lei n. 5.482/2020, de autoria do Senador Wellington Fagundes (PL/MT), na qual consta o seguinte: “[...] queremos registrar que frequentemente tomamos conhecimento da proposta de leis estaduais para preservar o Guadakan, como a Lei n. 12.197/2023, conhecida como ‘Transporte Zero’, válida para Mato Grosso, e o projeto da ‘Lei do Pantanal’, apresentado em Mato Grosso do Sul. Em todas essas iniciativas, a ideia central é a de preservar o Pantanal para que a região continue a ser explorada economicamente e, dessa maneira, possa dar lucros infinitos aos não indígenas: pecuária, turismo, pesca, mineração etc. Seria isso possível em face das mudanças climáticas verificadas em todo o mundo?” O documento foi divulgado pela APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e nele está cristalino que essas iniciativas, pensadas em gabinete, não coadunam com o modo de ser e estar no mundo do povo Guató, que não é orientado pela ideia de propriedade privada das terras e águas do Pantanal, tampouco pela lógica do agronegócio ou do turismo de pesca e outras atividades econômicas em voga na região. Para o povo Guató, há uma noção particular de bem viver, isto é, viver coletivamente em paz, com abundância de alimentos e com saúde, em equilíbrio com o meio ambiente e a partir da ideia de solidariedade superlativa.
VGN - A Grande Guerra do Paraguai é um episódio muitas vezes esquecido ou negligenciado na política e na história de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Quais são os efeitos desse conflito que podem ser observados atualmente?
Pesquisador - A Grande Guerra serviu, principalmente, como um evento fundante para o surgimento de uma elite branca ligada ao latifúndio nos atuais estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Militares que participaram do conflito e, posteriormente, da demarcação das fronteiras com o Paraguai, receberam títulos nobiliárquicos e a propriedade de terras tradicionalmente ocupadas por povos originários. Outros fizeram parte do establishment da economia ervateira no sul da província, como verificado na história da Companhia Matte Larangeira.
Uma análise rápida do livro de registro de terras devolutas (leia-se terras indígenas) doadas pelo governo de Mato Grosso a terceiros, a partir da década de 1880 e ao arrepio da Lei de Terras de 1850, atesta que muitas das famílias beneficiadas com essa política oficial são as mesmas que estão no poder político e econômico, tanto em Mato Grosso quanto em Mato Grosso do Sul. Outras que chegaram posteriormente se aliaram a elas. Em outras palavras, a origem de grande parte da propriedade privada da terra nos dois estados possui um vício de origem. Por isso, parlamentares de várias matrizes ideológicas defendem a legalização do ilegal, especialmente a tese inconstitucional do chamado “marco temporal”.
VGN - O Pantanal segue sendo ameaçado por grandes latifundiários, como foi o caso recente da aplicação de agente laranja em uma área do Pantanal Norte, em Barão de Melgaço. O que é preciso mudar para garantir a proteção do bioma e o que podemos aprender com as lições históricas?
Pesquisador - Uma resposta a esta pergunta complexa não pode ser simplificada. Acredito que o próprio povo Guató, por meio da nota informada anteriormente, possui uma resposta à altura, baseada em doze princípios. Segue o resumo de alguns deles:
1º) Considerar o bioma Pantanal como um ser vivo e, portanto, como sujeito de direitos.
2º) Assegurar a participação de indígenas, indicados por suas comunidades, em todos os conselhos consultivos e deliberativos, e nas demais esferas de tomada de decisões que tratem de políticas a serem definidas e aplicadas para o bioma.
3º) Incluir princípios da filosofia indígena do bem viver nos fundamentos das políticas públicas e da macroeconomia destinadas ao Pantanal: solidariedade superlativa, equilíbrio nas relações com o meio ambiente, reconhecimento e respeito às diferenças étnicas e socioculturais, valorização dos saberes ancestrais, construção de consensos, viver com simplicidade na vida em sociedade etc.
4º) Assegurar que as comunidades indígenas sejam remuneradas e incluídas no pagamento por serviços ambientais que realizam desde sempre, como produzir, recuperar e proteger as matas, morrarias, rios e baías, bem como a vida na planície pantaneira.
5º) Garantir que as comunidades indígenas sejam indenizadas por impactos socioambientais negativos que venham de fora e afetem seus territórios, decorrentes de incêndios florestais, mineração, agropecuária e outras atividades humanas degradantes ao meio ambiente.
6º) Exigir a realização do prévio Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) para toda e qualquer atividade econômica que promova a supressão da vegetação nativa de áreas extensas, o uso do fogo para a promoção de queimadas e a modificação do uso do solo, como ocorre em grandes propriedades destinadas a atividades agropecuárias e afins.
7º) Valorizar o patrimônio cultural material e imaterial e os saberes ancestrais dos povos indígenas para a preservação do bioma Pantanal.
8º) Incentivar a realização de atividades turísticas nas modalidades rural, ecológica, cultural e outras que causem menos impactos negativos ao meio ambiente e às populações originárias e tradicionais.
Acrescentaria ainda a necessidade de uma legislação que assegure a punição exemplar, com a prisão dos criminosos que cometem crimes de grande impacto socioambiental, e o confisco de suas propriedades rurais, destinando-as à criação de unidades de conservação e ao assentamento de comunidades tradicionais, caso os imóveis não estejam sobre terras tradicionalmente ocupadas.
Leia também - Geólogo diz que existe risco de alagamentos e inundações em Várzea Grande
Acesse também: VGNJUR VGNAGRO Fatos de Brasília