O uso de celulares e computadores por parte dos estudantes se por um lado pode estimular o aprendizado, por outro, tem se tornado um precedente perigoso quando não há o devido controle por parte dos gestores da escola, das prefeituras e do estado, que têm em muitos casos liberado a entrada de aparelhos eletrônicos durante as aulas.
Este não é um debate novo, mas o uso indevido de celulares está cada vez mais presente no dia a dia, e pior, os jogos de azar como os do “Tigrinho”, denunciado centenas de vezes como viciante e programado para que seus usuários percam dinheiro, são frequentes durante as aulas.
O professor de Ciências Humanas (história, filosofia, sociologia e projeto de vida), da Rede Estadual de Mato Grosso, Gilmar Soares, tem presenciado essa situação em sala de aula. Ele conta que ouve conversas de alunos que se “gabam” de saldos de R$ 400, R$ 500 e até mais nas plataformas desses jogos e se recusam a prestar atenção na aula.
“Tenho observado, principalmente entre os meninos de 14 a 15 anos de idade, uma troca de informações sobre o saldo em jogos e isto é desesperador para um educador porque esses alunos quando recebem uma atividade para fazer olham pra você e se perguntam para quê estudar se eu estou ganhando dinheiro fácil?”.
"A pseudo possibilidade de ganhar dinheiro fácil é uma tragédia pessoal, de fracasso, da perda total de princípios, de batalha e de luta pela vida. Essa ilusão acaba em violência, morte e crime para essas crianças, que logo adiante vão perder nesses jogos e elas não enxergam a construção do conhecimento como um caminho para a vida. Isto é desesperador para um educador" - Gilmar Soares
Ele relata também que chegou a ser procurado por uma aluna para que trocasse R$ 500 em dinheiro vivo por um Pix, mas disse que não tinha saldo suficiente e depois descobriu que há casos em que o aluno usa notas falsas e troca por uma transferência bancária para ter notas de reais válidas.
Para a professora, especialista em Psicopedagogia, que hoje é orientadora de Educação Digital da Rede Pública da prefeitura da cidade de São Paulo, Julia Dutra Moretti, os prejuízos são principalmente do ponto de vista cognitivo, porque o ambiente da sala de aula, que já desafiador, cria mais esse aparato de distração prejudicando o foco e a capacidade atencional dos estudantes.
“Além disso, do ponto de vista da coordenação motora e da capacidade de fazer habilidades manuais, eu já vinha percebendo que os estudantes estão com menos vontade e menos cuidado com as atividades que envolvem, por exemplo, pintura, desenho, fazer cartazes, e como o celular é muito imediatista, é só clicar um botão ou apertar um feed para a rolagem, ele acaba não estimulando habilidades mais complexas e motoras e, por fim as habilidades socioemocionais”, conta.
“Os alunos estão ficando muito dependentes do aparelho. Eles relatam que estão indo dormir muito tarde da noite e sem horário adequado de sono e ficam irritados. Literalmente não conseguem soltar o celular das mãos como se fosse uma extensão do próprio corpo”, acrescenta.
A professora observou ainda que a interação entre eles, que segundo ela, é muito importante tanto na sala quanto no recreio, acabam. Eles abrem mão das brincadeiras, de conversar com os amigos, de até, às vezes, se envolver em uma situação de conflito que vai exigir uma habilidade socioemocional mais complexa.
Julia conta que o uso do celular começou a aparecer em uma presença mais marcante há seis anos, mas foi depois da pandemia da Covid-19 que o seu uso aumentou de maneira considerável, principalmente entre os adolescentes. Mas também começaram a aparecer crianças pequenas do primeiro ao quinto ano com aparelho celular, o que antes era raro de ser ver.
“Infelizmente o uso não é pedagógico, é basicamente para joguinhos seja de futebol, de simulador de aposta, de matar os oponentes e há também o uso de redes sociais para fazer lives”, conta a professora que atua no ensino fundamental e no Ensino de Jovens e Adultos (EJA).
Para ela o uso do celular tem sido um grande problema porque dificilmente está sendo usado como forma pedagógica, já que muitas escolas não têm acesso à internet, mas para os alunos que têm aparelhos é muito difícil não entrar nesses jogos ou atividades que são extremamente viciantes e muito divertidas para eles.
“É uma distração dentro do bolso e a gente precisa mediar e formar um pensamento crítico, explicar o que que é o celular, para o que ele deve ser usado, quais as formas adequadas e pedagógicas, mas hoje, em 2024, eu acho que está sendo mais um problema para a gente lidar na nossa realidade que envolve muitos outros fatores, e o celular tem gerado muitos problemas, muitos conflitos”, analisa Julia.
Regulamentação
Uma das soluções, diz o professor Gilmar Soares, que é secretário-adjunto de Políticas Educacionais do Sindicato dos Trabalhadores no Ensino Público de Mato Grosso (Sintep-MT), é a de que as escolas possam ter pessoal com formação profissional adequada para que possam lidar com essa questão tecnológica.
Segundo Gilmar, o que acontece no Mato Grosso é uma pseudo inclusão digital na escola em que se colocam computador e internet, mas não as condições para que de fato essa tecnologia seja um instrumento do conhecimento e não se torne uma arma de desinformação na mão do aluno.
“Eu sou partícipe daquela ideia que não basta proibir, mas é preciso regulamentar; que os alunos saibam a cada início de ano qual são os limites deles com a tecnologia e se eles ultrapassarem esses limites terão de sofrer consequências e penalidades”, defende o professor Gilmar.
Já a professora Julia vai no sentido de que é preciso proibir o uso de celular em sala de aula, após rever suas posições. Ela reforça que a sua opinião é pessoal, de quem lida com mais de 600 alunos, mas diante dos diversos desafios a serem vencidos para conseguir construir uma autonomia e um pensamento crítico dos estudantes, o acesso hoje em 2024, tem de ser proibido.
“Os alunos têm acesso ao computador nas aulas de educação digital. O letramento digital faz parte do nosso currículo, mas também faz parte do nosso currículo a construção de um pensamento crítico, a compreensão dos usos de todas essas mídias digitais, de compreender as questões de direito autoral, as questões relacionadas a fake news, e eu acredito que estamos sim avançando em muito nesses pontos, mas em relação ao aparelho celular dentro da escola eu não vi nenhuma vantagem, muito pelo contrário, eu vejo que os alunos estão tendo menos oportunidades ainda na vida escolar deles”, diz a psicopedagoga.
"O uso do celular extrapola a questão da educação, mas é um desafio não só para as escolas, não só para os professores. É um desafio que a gente ainda não conseguiu encarar de frente" - Julia Dutra Moretti
A falta de legislação especifica na prefeitura de São Paulo sobre o uso do celular em sala de aula tem levado os educadores (professores, coordenação e direção), a realizarem diversas reuniões nos horários de formação coletiva, mas é um assunto com opiniões divergentes, conta a professora.
“O que nós fizemos para comportar essas reclamações, principalmente dos professores, foi uma assembleia estudantil e construímos junto com os alunos alguns combinados e regras, que se se transformaram em banners colocados em todas as salas. O combinado foi o de que celular e fone de ouvido não combinam com a aula. A resposta ainda é insuficiente, mas satisfatória”, diz.
Pais de alunos
Segundo o professor Gilmar Soares, é preciso que os pais se envolvam mais na questão do uso do celular por parte dos filhos, mas nem sempre isso ocorre.
“Nós temos feito histórico de cada aluno, daqueles que não têm domínio do celular, daqueles alunos que, de fato, estão sujeitos a ele, quase como escravos. Nós temos informado aos pais, mas a gente encontra pai e mãe que não aceita que retiremos o celular dos filhos”, conta Gilmar.
O diálogo com os pais dos alunos também é defendido pela professora Julia. Como orientadora de educação digital, ela procura oferecer informações sobre o uso longo das telas. Para explicar o uso correto ela mostra aos pais o gráfico da Sociedade Brasileira de Pediatria sobre o tempo de tela adequado pra cada idade. Segundo ela, as reações são muito diversas. Desde os pais que agradecem que os filhos melhoraram o comportamento e outros que criticam dizendo que não têm o que fazer, pois trabalham fora, deixando os filhos sozinhos em casa e as ruas são perigosas.
Segundo especialistas, o limite de tempo para crianças estarem em contato com esses aparelhos são determinados pela faixa etária, sempre com supervisão:
Menores de 2 anos: nenhum contato com telas ou videogames;
Dos 2 aos 5 anos: até uma hora por dia;
Dos 6 aos 10 anos: entre uma e duas horas por dia;
Dos 11 aos 18 anos: entre duas e três horas por dia.
“Eu vejo que os pais ficam bem assustados porque eu falo bastante da dessa questão das telas, dos estudos que mostram que o desempenho cognitivo está caindo, que o QI pela primeira vez está caindo, eu falo que tem código internacional de estrutura pro game desorder que é uma doença de vício em videogame e em jogos digitais”, diz Julia.
“Nós adultos também estamos no celular também e as crianças, os adolescentes, se espelham no nosso comportamento. Então, tudo que eu falo, , não é só pra eles não, é pra gente também, que precisa tentar se controlar, porque o celular entrou com tudo na nossa vida”, conclui. (Cut. Brasil)